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Ilusões orçamentais e o sistema de segurança social (in Portuguese only)*

By: Nazaré da Costa Cabral
Segurança Social

I - O conceito de ilusão orçamental, embora explorado sobretudo a partir dos anos setenta pelos cultores da chamada teoria da Public Choice, é de origem bem mais antiga, devendo a sua formulação seminal ao economista italiano Amilcare Puviani, na sua obra de 1903, Teoria dell'illusione finanziaria. A ilusão orçamental acontece quando as receitas públicas e o esforço fiscal associado não são de imediato percebidos pelos contribuintes, o que estimula, por parte do governo do sector em causa, o aumento da despesa pública coberta por essa mesma receita. Por exemplo, no quadro das relações entre diferentes níveis de governo, as transferências ou subvenções feitas pelo Estado central para os níveis infraestaduais (estados, regiões ou autarquias locais) são usualmente associadas – desde Gramlich (1971) – ao chamado efeito ‘flypaper’ (papel mata-moscas), a partir da expressão celebrizada por Okun, ‘(grant) money stiks where it hits’ (o dinheiro da subvenção ‘gruda’ onde se fixa), tal como uma mosca se fixa no papel mata-moscas. Ou seja, a transferência ou subvenção cria uma espécie de ilusão de que a receita transferida não tem custos para os contribuintes, estimulando assim o gasto público associado.

 

II - Também nas relações financeiras entre o Estado e outros sectores financeiros, ainda que de natureza não territorial – como é o caso do sector da segurança social –, podemos encontrar manifestações deste fenómeno de ilusão orçamental. A simples existência de transferências do Orçamento do Estado (OE), baseadas em impostos, para financiar uma parte das despesas do sistema de segurança social – que são as despesas de natureza não contributiva (entre nós, e.g. pensões sociais, Rendimento Social de Inserção e a própria Ação Social) – pode potenciar este efeito. A ilusão que se cria de que por detrás dessa receita inexiste um custo pode favorecer a tentação de induzir o aumento da despesa através de: i) criação de novas prestações sociais; ii) facilitação dos critérios de acesso às prestações existentes; iii) aumento dos valores e/ou do prazo de atribuição das mesmas.  

 

A este primeiro tipo de ilusão orçamental direta – diretamente resultante da existência de transferências do OE para financiar as despesas não contributivas da segurança social – deveremos ainda acrescentar formas de ilusão orçamental indireta, resultantes do redimensionamento ou reconfiguração do próprio sistema contributivo (previdencial) em prol do financiamento ou da ‘lógica’ fiscal, com isso atenuando a perceção da evolução dos riscos sociais e do seu custo. Convém recordar que o nosso regime contributivo radica num modelo de taxa contributiva global (vulgarmente, taxa social única, TSU) que cobre a integralidade dos riscos sociais (velhice, desemprego, doença, parentalidade, invalidez e morte). Este modelo contrapõe-se ao modelo de taxas ou seguros específicos para cada um desses riscos. Ainda que a taxa global tenha a vantagem de assegurar uma melhor partilha de risco (na gestão entre riscos sociais), tem igualmente a desvantagem de não permitir refletir adequadamente a evolução do custo técnico das eventualidades que a integram. Tal modelo pode mesmo conduzir a uma maior opacidade na gestão financeira das diferentes eventualidades: desde logo, o impacto que uma determinada alteração legislativa (e.g. maior generosidade das condições de acesso a certa prestação) tem sobre o próprio custo das eventualidades afetadas não é imediatamente internalizado nas contribuições para o sistema. 

 

Ora, no quadro deste nosso modelo, assistiu-se nos últimos anos a um redimensionamento do regime contributivo em prol do reforço da ´lógica’ fiscal, fundamentalmente através da progressiva ‘desnatação’ da TSU. Esta desnatação implicou retirar algumas prestações ou riscos sociais do âmbito da TSU, não para serem suprimidos, mas para serem integrados no regime não contributivo, e assim financiados já não através das contribuições sociais, mas sim através de transferências do OE (alimentadas por impostos) ou da consignação de receita fiscal. Foi o que sucedeu, por exemplo, com as prestações familiares (e.g. abono de família). Esta retirada das prestações familiares poderia ter implicado, na mesma proporção, a redução da TSU e assim o desagravamento do esforço contributivo das empresas. No entanto, tal não foi considerado possível: a desnatação serviu, isso sim, para parcialmente compensar o aumento do custo da velhice sem obrigar a elevar a TSU (que assim se manteve inalterada nos 34,75%), não tendo esse aumento de custo sido sequer percecionado pelos contribuintes. Aliás, este processo de desnatação, para além das prestações familiares, abrangeu ainda prestações sem suporte contributivo, como foi o caso dos complementos sociais no âmbito da pensão mínima do regime geral. Se é verdade que, neste caso, a passagem de um financiamento contributivo para um financiamento através do OE se justificou amplamente pela ausente base contributiva destas prestações (evitando assim que fossem suportadas pelos trabalhadores com os seus ‘descontos’), a verdade é que esse financiamento fiscal de tais prestações sem base contributiva mas em todo o caso enxertadas no quadro de eventualidades de natureza contributiva acaba, também ele, por conduzir a uma menor perceção do seu custo e do impacto que acarretam para o custo dos riscos sociais onde se enxertam (no exemplo dado, o custo do risco velhice). 

 

III – O papel do sistema de segurança social é inestimável enquanto instrumento de estabilização macroeconómica, de combate à pobreza e de redução das desigualdades. O sistema português tem assistido nos últimos anos ao reforço dos vasos comunicantes entre os regimes contributivo e não contributivo, levando com isso a um esbatimento da sua dimensão seguradora. Contudo, não se podem ignorar os riscos de ilusão orçamental que esse esbatimento tende a implicar. O conhecimento detalhado dos custos de cada eventualidade afigura-se necessário para evitar tal efeito, perscrutando-se a estrutura da TSU, a sua adesão à realidade demográfica e económica atual, e mapeando-se devidamente todos aqueles vasos comunicantes entre regimes. Esse conhecimento deve informar as decisões políticas, sejam elas menos sistémicas, como seja a simplificação do universo de prestações sociais (hoje, um autêntico emaranhado financeiro) ou mais sistémicas, por exemplo um eventual reforço da lógica de seguro social, tornando claros os custos que as prestações sociais implicam para quem contribui e procurando poupanças nesses custos, e assim enfrentando, de forma transparente e intertemporalmente justa, os desafios de adequação/sustentabilidade que se colocam ao nosso sistema de segurança social num quadro de envelhecimento acelerado. 

 

* Artigo de opinião publicado originalmente na edição n.º 4579 do Jornal de Negócios de 14 de setembro de 2021.

Fiscal policy . 20 September 2021