
Estamos em vésperas de apresentação de um orçamento que surge já numa fase de recuperação. Como é que se pode garantir um equilíbrio entre a necessidade de ainda apoiar empresas e famílias e necessidade de reduzir a dívida pública?
O que é importante agora é que a economia recupere bem, que as pessoas e as empresas que ficaram numa situação de inactividade temporária possam retomar as suas actividades e os trabalhadores possam voltar a receber os seus salários. Uma questão que nos deve preocupar nos próximos anos é a da solidez e estabilidade salarial, a de garantir que os trabalhadores podem contar com um salário, porque isso é importante para as suas vidas e é importante para o sistema de pensões. O que não nos parece desejável é a multiplicação de apoios sociais com carácter não contributivo, que na verdade configuram prestações assistencialistas, que criam problemas nas contas públicas, mas que depois também não resolvem o problema e apenas funcionam como um paliativo para a ausência de crescimento económico. Neste momento, temos ainda em vigor algumas medidas de apoio que foram criadas durante a pandemia que é natural que ainda se mantenham, mas aquilo que esperamos é que essas medidas de facto se assumam como medidas temporárias, que possam vir a ser descontinuadas ao longo do tempo e que não se transformem em medidas permanentes. Até porque muitas destas medidas, determinadas prestações sociais e contratação de pessoal, podem configurar despesa rígida que depois funciona como uma forma de pressão sobre o Orçamento do Estado.
O Governo apresentou essas medidas como temporárias. Vê algumas em particular que corram o risco de se tornar permanentes?
Há sempre esse risco. O mais importante é que a economia seja capaz de voltar a crescer e de criar rendimento e riqueza para que as pessoas possam, a partir dos seus rendimentos, financiar o Estado e o sistema de Segurança Social.
Com a retoma da economia, o Governo ficou com uma folga para tomar algumas medidas e mesmo assim cumprir a meta do défice que definiu no Programa de Estabilidade?
Esta ideia de que há uma folga é uma ideia para a qual temos de olhar com cuidado. Um défice orçamental nunca é uma folga. Um défice significa que as receitas efectivas são menores do que as despesas efectivas, o que obriga o Estado a ter de se financiar. Nas situações de excedente, podemos ter uma situação de folga orçamental, mas nem sempre, porque se um país tem uma dívida pública que é considerada excessiva, esse excedente tem de ser alocado à redução da própria dívida. Portanto, também não há assim grande folga nessas circunstâncias. Tivemos um excedente orçamental de 177 milhões de euros em 2019 e não havia ali propriamente uma folga porque tínhamos uma dívida muito significativa. Depois com a pandemia, regressámos aos défices e muito expressivos. Em 2020, de 11.500 milhões de euros, o equivalente a 5,7% do PIB. Para 2021, a nossa estimativa é de um défice em torno de 9000 milhões de euros. E para o próximo ano, vamos ter ainda um défice da ordem dos 5600 milhões de euros, os tais 2,4% do PIB. Portanto, não se pode dizer com isto que existe uma folga orçamental.
Considera portanto que, quando o Governo aponta, no Programa de Estabilidade, para um défice de 3,2%, não está a ser suficientemente prudente, é isso?
Tudo é relativo. Quando faço este apanhado de indicadores, não quero parecer demasiadamente draconiana, nem severa. O comportamento das finanças públicas depende das circunstâncias do momento, da vida económica do país e das necessidades económicas e sociais do país. Agora há aqui um ponto que não podemos esquecer, que é o de que a nossa situação financeira não é uma situação confortável. Aqui, falo da situação da dívida pública. Embora as regras orçamentais estejam suspensas, há sempre mecanismos de escrutínio daquilo que é a imagem externa do país. Isso não desaparece. Estamos sempre, sempre a ser avaliados. Devo dizer que esta questão foi gerida nos últimos anos com cuidado pelo Governo. E aliás acabámos por ter um prémio, porque temos tido condições de financiamento consistentemente mais favoráveis e isso deve-se em boa medida à percepção, que eu acho que houve, de que era preciso gerir este tema com pinças, com eficácia, para que Portugal de facto fosse retirado dos radares dos mercados financeiros.
E agora, neste OE, até onde é que o Governo tem de ir para manter Portugal fora desses radares?
A mensagem que tem de se transmitir é de prudência orçamental, uma mensagem de que estamos apostados em manter o controlo das finanças públicas, para que logo que possível a estratégia de descida da dívida pública possa ser seguida.
Seria útil Portugal cumprir já a regra dos 3% no défice no próximo ano?
Desse ponto de vista estrito poderia ser útil. Claro que teremos de ver se as circunstâncias económicas e sociais também o permitem. Mas é preciso ter isto em conta: neste momento, estamos muito longe dos tempos de austeridade. O que temos é uma política orçamental expansionista, induzida por um Plano de Recuperação e Resiliência que acaba por funcionar como o tal almoço grátis porque não tem uma imediata expressão orçamental. Nós beneficiamos de um extra, que nos permite induzir um estímulo forte do ponto de vista orçamental, sem que isso tenha um reflexo imediato no défice orçamental. Portanto, põe-se a questão agora de saber se do lado interno é necessário sobreaquecermos mais a economia. Não tenho uma resposta definitiva em relação a esta questão. Parece-me que não devemos arrefecê-la, mas também me questiono se vale a pena sobreaquecer a economia para além daquilo que fazem o próprio PRR e todos os apoios que têm vindo a ser dados. A austeridade é um esforço de consolidação num contexto de retracção económica, é uma política restritiva pró-cíclica. Agora, quando entramos numa fase de expansão e essa expansão for firme, se não houver o risco de termos um retrocesso, pergunto-me se não devemos aproveitar este momento para fazer uma consolidação. Não é uma consolidação cega, é, com calma, aproveitando este período de uma certa distensão da política orçamental, repensar os factores estruturais de despesa, repensar as políticas públicas. Não custa nada debater as coisas, vale a pena aproveitar este momento para suscitar algumas questões mais estruturantes relativamente ao que vai ser a despesa pública.
Por exemplo, a Segurança Social?
Deve ser discutida. Há um esvaziamento daquilo que é a dimensão seguradora do sistema de Segurança Social. Se tivermos situações de erosão no mercado de trabalho, isso de facto vai levar a mudanças no financiamento da Segurança Social e, portanto, é preciso saber como é que vamos financiar pensões que sejam adequadas e que garantam rendimentos suficientes às pessoas. É uma questão que tem de ser estuda.
Tem sido muito difícil chegar a entendimentos sobre este tema em Portugal...
Sim. Sei que há aqui uma grande dimensão ideológica. Mas acho que se calhar este seria o momento, de uma forma mais ideologicamente neutra, se é que isto é possível, para tentar discutir as coisas. E quem diz na Segurança Social, diz também no sistema de saúde. Agora estamos a contratar mais pessoal e, de facto, havia essa necessidade. Mas, para futuro, em que áreas é que vão ser necessários mais profissionais de saúde? Não será em todas as áreas, não serão em todos os locais do país. Nunca vi esta discussão - em relação àquilo que se perspectiva quanto ao futuro do Serviço Nacional de Saúde - a ser feita.
As alterações climáticas também representam um desafio para as finanças públicas?
É uma preocupação. Em Portugal, ainda não estamos bem cientes dessa questão. Agora, começamos a perceber, porque temos já alguns custos de transição. Sermos capazes de enfrentar as metas muito ambiciosas de descarbonização que estão definidas quer em termos internacionais, quer em termos europeus, constitui um grande desafio e vai ter repercussões em termos de custos. Neste momento, temos um problema mais imediato que é o do aumento dos custos de energia, particularmente dos custos da electricidade. Estamos a descontinuar formas de produção energética menos limpas e estamos a introduzir formas de produção energética mais limpas, só que há um momento em que, face às necessidades de procura, a oferta é insuficiente.
Para as finanças públicas, isto vai exigir ao Estado uma maior intervenção?
Exactamente. Estes custos vão ser suportados por todos os sectores, privado e público, mas no caso das finanças públicas teremos custos significativos, alguns com o apoio financeiro da UE, mas outros nacionais.
As garantias que foram assumidas pelo Estado podem vir-nos a pesar dentro de alguns anos?
É uma marca da gestão da pandemia em Portugal. Se compararmos com outros países, que optaram de uma forma muito mais evidente por medidas com impacto orçamental imediato, a gestão da pandemia em Portugal ficou marcada por uma preferência maior por medidas com impacto mediato, indirecto e tentando conter um efeito mais imediato no saldo orçamental.
É uma boa estratégia?
Saber se foi boa ou não, é algo que os próximos anos nos vão dizer e vai depender da forma como vierem a decorrer as execuções das garantias.
O fim das moratórias é um momento importante para perceber isso...
Sim, porque é um momento para determinar a capacidade de as empresas regressarem à actividade sem ajudas públicas e é um momento em que o mercado vai determinar quais as empresas que não têm condições de sobrevivência.
O Banco de Portugal e o Governo parecem estar optimistas em relação ao que irá acontecer com as moratórias. Partilha desse optimismo?
A nossa ideia em relação a esta questão é que é preciso prudência e acompanhar a situação. De facto, não existem particulares sinais de alarme, tendo em conta a informação que é dada pelo regulador e a informação que os próprios bancos têm, mas temos que ir vendo com prudência como é que a situação evolui.
Qual é que acha que é o motivo para o Governo não ter apresentado um novo decreto-lei de execução orçamental (DLEO) em 2020 e 2021?
Não sei, o ministro das Finanças invocou questões que se prendiam com a gestão da pandemia. Não posso responder a isso. Mas a situação é de facto bizarra. É verdade que o DLEO tem crescido bastante no seu conteúdo, se calhar para lá do que seria desejável. Se calhar está a acomodar matérias que não seria suposto acomodar, isso depois também torna o trabalho mais difícil. Agora a situação é anómala. Desejo que o Governo já esteja a trabalhar no decreto-lei de execução para o próximo ano, para que entre em vigor em 2022. Se o Governo está desconfortável com o DLEO, penso que deve propor ao Parlamento uma alteração à Lei de Enquadramento Orçamental a suprimir a necessidade do DLEO. O que não faz sentido é termos uma exigência legal e o Governo não cumprir.
O que espera que aconteça na reforma das regras orçamentais europeias?
Com a pandemia, houve a suspensão das regras e a questão que se coloca no fundo é o que vamos ter em 2023, quando as regras voltarem a ser aplicadas. Nada de muito substantivo foi feito durante as presidências alemã e portuguesa e agora o que acontece é que há um impasse político, porque os dois grandes países da zona euro, a França e a Alemanha, estão com processos eleitorais a decorrer, com tudo o que isto envolve nestas matérias. No caso francês, o grande impulsionador dessa reforma, o presidente Macron, vai ter eleições presidenciais exactamente no momento em que se realiza a presidência francesa da UE no primeiro semestre de 2022. Não sei se haverá condições políticas para fazer aquilo que o Presidente Macron tem dito que faria. E por outro lado, com a recuperação que parece robusta na zona euro, com as tensões inflacionistas que se antevêem, já temos alguns países a defenderem que as regras voltem tal como estão. Sinceramente, creio que é isso que vai acabar por acontecer. As regras em 2023 vão regressar, admito que possa haver o período de transição para os países que têm uma dívida mais elevada poderem ter uma trajectória de redução a uma velocidade mais baixa. Mas também admito que as regras voltem pura e simplesmente como estavam.
Ainda assim, numa eventual reforma futura das regras, o que acha que seria essencial fazer, nomeadamente para Portugal?
Também considero, tal como foi proposto pelo Conselho Orçamental Europeu, que é desejável uma simplificação e que se passe a ter uma regra pensada em torno da dívida pública. Essa é que deve ser a grande preocupação, nomeadamente para os países que têm a dívida pública elevada. Controlar a dívida pública e trazê-la para níveis mais moderados.
As regras devem adaptar-se às circunstâncias de cada país?
Não me chocaria que, em vez de termos uma regra igual para todos, tivéssemos a possibilidade de os países definirem uma trajectória de redução, em compromisso com a Comissão Europeia dentro de limites mínimos de redução de médio prazo predefinidos. E que tenham de cumprir essa trajectória, com a monitorização das instituições orçamentais independentes nacionais e da própria Comissão Europeia. Mas mais importante que o desenho de uma regra europeia, há aqui uma questão que é nacional. Para certos países, a existência de regras europeias não seria se calhar uma necessidade porque eles próprios têm regras que cumprem, porque existe uma cultura forte de responsabilidade em torno da disciplina orçamental. Agora, admito que, para outros países, essa cultura seja mais frágil. Muitas vezes temos regras nacionais que estão na lei, mas que acabam por não ser cumpridas, porque os mecanismos de escrutínio e de responsabilização também são débeis.
É esse é o caso de Portugal? Precisamos das regras europeias?
Acabaram por surgir como uma necessidade. Mas, de todo o modo, a avaliação que se faz da realidade de cada país, com regras ou sem elas, está sempre presente. Porque, em última análise, os chamados mecanismos de mercado acabam por fazer esse trabalho de distinguir o que é um bom devedor e um mau devedor, do tal perfil de risco, em função daquilo que é o historial reputacional que esse mesmo país apresenta.
Em Portugal, nos últimos anos, essa pressão parece mais intensa que as próprias regras...
Exacto, acabámos por interiorizar isso porque houve um momento em que deixámos de ter acesso ao financiamento no mercado de dívida. A força dessa pressão existe e acabamos sempre por ser confrontados com ela. De certa forma, a regra orçamental é essencialmente um mecanismo de prudência.
A regra do défice de 3% e a regra do saldo estrutural poderiam ser abandonadas?
Essas regras estão um pouco desajustadas face à realidade, nomeadamente aquilo que são as taxas de crescimento nominais da economia, e podem ser repensadas. Mas também sei que estão num protocolo anexo aos tratados da União Europeia, e precisam de ser alteradas nos mesmos termos, portanto é difícil do ponto de vista político, não vejo que possa acontecer nos próximos tempos.
*Entrevista publicada originalmente na edição n.º 11.477 do Jornal Público, de 28 de setembro de 2021.
Date of last update: 08/10/2021