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Contraciclo - O blogue da CFP

Entre a recuperação e a vulnerabilidade financeira: a dualidade na confiança dos consumidores portugueses

Por: Erica Marujo, João Leal, Tiago Martins
“The varying expectations of business men…constitute the immediate cause and direct causes or antecedents of industrial fluctuations (…)" Pigou (1927)

 

Os primeiros índices de confiança dos consumidores foram desenvolvidos e implementados nos Estados Unidos na década de 60. A sua criação surgiu como resposta aos primeiros sinais de abrandamento económico na sequência do forte crescimento pós Segunda Guerra Mundial e à consequente necessidade de governo, empresas, intermediários financeiros e outros agentes económicos melhor compreenderem e acompanharem o desempenho da economia. 

 

Estes índices rapidamente se estenderam a outras geografias passando a constituir um importante barómetro para empresas e decisores públicos. Em Portugal, o INE divulga mensalmente desde 1997 Inquéritos Qualitativos de Conjuntura às Empresas e aos Consumidores. À data, o INE justificava a importância do inquérito com a satisfação de dois objetivos: um primeiro de cariz conjuntural, por contribuir para uma melhor compreensão da conjuntura económica; um segundo sobre a análise de disparidades de posse e acompanhamento de aquisição dos principais bens familiares (e.g. automóveis, habitação). Em agosto de 2024, o inquérito aos consumidores foi realizado a partir de um total de 1148 respostas obtidas (entrevistas telefónicas) a um conjunto de 13 perguntas (e 3 adicionais trimestralmente).

 

A confiança dos consumidores é um tema central na análise económica[1]. Guo e He (2020), com base em dados de painel de 41 países, demonstraram que níveis mais elevados de confiança, tanto dos consumidores quanto dos empresários, contribuem positivamente para o crescimento económico. Este impacto revela-se particularmente significativo durante recessões ou períodos de incerteza, quando a confiança amplifica os efeitos das políticas monetária e orçamental. Estudos anteriores, como os de Mishkin et al. (1978) e Ahmed e Cassou (2016), corroboram esta relação ao evidenciar que a confiança dos consumidores está fortemente correlacionada com o consumo, especialmente no segmento de bens duradouros. Para a área do euro, o BCE (2015) conclui que os índices de confiança dos consumidores são um importante indicador de evolução do consumo privado, com a vantagem de essa informação ficar disponível semanas antes dos dados relativos aos principais determinantes do consumo (como o rendimento disponível) serem divulgados.

 

A análise apresentada neste artigo faz uso dos inquéritos harmonizados divulgados pela Comissão Europeia. Tal permite uma comparação da avaliação dos consumidores portugueses com o de outros países da União Europeia, assim como ter acesso a informação detalhada sobre as características socioeconómicas da amostra de consumidores (e.g. ocupação, nível de escolaridade, idade, género, quartil de rendimento).

 

Gráfico 1 – Confiança dos consumidores

Fontes: Comissão Europeia, cálculos dos autores. | Nota: Dados estandardizados, média histórica = 0.

 

A confiança dos consumidores tem recuperado de forma expressiva no último ano (ver Gráfico 1). No 3.º trimestre de 2024, a confiança regressou a níveis registados pela última vez em meados de 2021. Esta recuperação, que regista o maior número de meses de melhoria consecutiva desde 1997 (ver Gráfico 2), ocorreu após a deterioração assinalável que se observou entre fevereiro e novembro de 2022. Nesse período de 9 meses, que coincidiu com o pico da crise inflacionista, este indicador atingiu o seu nível mais baixo da série histórica fora de períodos de recessão. Em outubro de 2022, a inflação, medida pelo índice de preços no consumidor, atingiu os 10,1%, quando em janeiro era de 3,3%. A recuperação da confiança que se seguiu foi brevemente interrompida entre julho e novembro de 2023, uma fase marcada pelos últimos aumentos da taxa de juro diretora pelo BCE. 

 

Gráfico 2 - Número de meses de melhoria consecutiva da confiança dos consumidores

Fontes: Comissão Europeia, cálculos dos autores. 

 

Ainda assim, a confiança dos consumidores permanece em níveis inferiores aos observados em 2019, período imediatamente anterior ao da crise pandémica. Face a este período, a avaliação das famílias quanto à sua situação financeira nos últimos 12 meses, bem como a sua expectativa quanto à situação económica do país no próximo ano, são as componentes do índice de confiança que registam ainda uma maior distância face ao período pré-pandémico.

 

É também de notar que a melhoria da confiança esteve concentrada em agregados do quartil de rendimento superior (ver Gráfico 3). De facto, face ao final de 2019, apenas a confiança dos consumidores cujos agregados se situam no patamar superior da distribuição de rendimento recuperou de forma completa, ao passo que no 2.º quartil, por exemplo, esta situa-se cerca de 1 desvio padrão abaixo desse limiar. 

 

Este facto é coerente com o impacto diferenciado do aumento da inflação. Existe evidência que aponta para uma maior sensibilidade da confiança dos consumidores à evolução dos preços de bens alimentares e energéticos quando comparado com a inflação total (ver Anesti et al (2024) e Banco de Portugal (2022)). Tal está relacionado com a saliência e a visibilidade destes produtos, tendo em conta a frequência com que são adquiridos. Assim, quando os consumidores assistem a flutuações nos preços de produtos essenciais (e.g. pão, leite, carne, peixe) que compram com regularidade, têm a perceção de que o custo de vida está a aumentar, mesmo que a inflação geral se mantenha estável. De igual modo, de acordo com o último inquérito à despesa das famílias, a despesa em alimentação e energia representa 22% da despesa total do quintil de rendimentos mais baixo, comparado com 13,6% no quintil de rendimentos mais elevados. Não obstante a moderação recente da inflação nesta categoria de bens, o seu impacto no nível de preços foi permanente.

 

Gráfico 3  - Distância da confiança dos consumidores face a dezembro 2019

 

Fontes: Comissão Europeia, cálculos dos autores. | Nota: séries temporais originais estandardizadas; última observação: 3.º trimestre 2024.

 

O preço dos bens alimentares em setembro de 2024 era 31% superior ao registado cinco anos antes. Nos bens energéticos, a diferença era de 18%. O Gráfico 4 demonstra que, desde 2019, a evolução das remunerações médias superou a evolução da inflação total, traduzindo-se em ganhos reais de rendimento. No entanto, se considerarmos a evolução do preço dos bens alimentares, o diferencial desde 2022 é negativo. 

 

Gráfico 4  – Crescimento acumulado das remunerações médias brutas e da inflação dos produtos alimentares

 

Fontes: INE, Eurostat, cálculos dos autores. | Nota: Inflação total e da inflação dos bens alimentares medido pelo IHPC; dados em médias móveis de 12 meses.

 

Adicionalmente, a percentagem de consumidores que reportam estar em situação de stress financeiro é quase o dobro da registada no pré-pandemia. A informação do inquérito aos consumidores permite identificar a evolução percecionada do stress financeiro das famílias (ver Gráfico 5).[2] Tal é aproximado pela descrição que os consumidores fazem sobre a situação financeira atual do seu agregado familiar. Em particular, compara-se a proporção de respostas que indicam a necessidade de recorrer a poupança ou a endividamento – uma proxy para o stress financeiro - com a proporção de consumidores que reportam estar a poupar um pouco ou muito. Cerca de 15% dos consumidores podem ser identificados como estando em stress financeiro, face aos 8,5% de dezembro de 2019. Ainda assim, é de ressalvar uma diminuição expressiva face aos 20% que, em média, se registaram entre o final de 2022 e de 2023. Em perspetiva, entre 2012 e 2014, período marcado pela implementação do Programa de Assistência Económica e Financeira, em média identificavam-se 20,7% dos respondentes nesta situação (tendo atingido um máximo de 24,4% em julho de 2013).

 

Gráfico 5- Percentagem de respostas dos consumidores na avaliação da sua situação financeira

 

Fontes: Comissão Europeia, cálculos dos autores.

 

Medidas alternativas de vulnerabilidade financeira das famílias confirmam o seu agravamento em 2023, e o seu aliviar na primeira metade de 2024. Utilizando informação estatística das contas nacionais não financeiras e financeiras,[3] foi construído um indicador compósito que agrega informação relevante de 13 indicadores em cinco dimensões alternativas (capacidade de serviço da dívida, alavancagem, financiamento, rendimento e atividade económica), representativas da situação financeira das famílias. Verifica-se que, após um longo período de alívio de vulnerabilidades, entre 2015 e 2022, que incluiu o período da pandemia, no ano de 2023 assistiu-se a um ressurgir das vulnerabilidades, fenómeno que acabou por se revelar temporário (ver Gráfico 6). Este agravamento esteve precisamente ligado a uma quebra dos rendimentos disponíveis reais, bem como ao impacto do aumento das taxas de juro no custo do financiamento contratado pelas famílias portuguesas. Enquanto o primeiro fator foi, entretanto, revertido, o segundo tenderá a ter um efeito mais persistente no tempo.

 

Gráfico 6- Indicador compósito de vulnerabilidade financeira das famílias

 

Fontes: INE, Banco de Portugal, Eurostat, cálculos dos autores.

 

Ainda que desigual e incompleta, a melhoria da confiança dos consumidores foi transversal. Importa por isso compreender que fatores ajudam a explicar esta evolução. Para responder a esta questão, é estimada uma regressão linear[4] que relaciona a confiança com potenciais determinantes do consumo privado. A regressão,[5] estimada entre o ano de 2000 e 2024, inclui a inflação dos bens alimentares, a taxa de desemprego, a taxa de crescimento anual do preço das ações no mercado europeu, a taxa de variação do preço da habitação e as expectativas dos consumidores quanto à evolução do desemprego e dos preços nos 12 meses seguintes. Estes últimos têm a vantagem de introduzir uma componente prospetiva.

 

De acordo com os resultados obtidos através desta estimação, o nível mais baixo da confiança atingido em 2023 pode ser explicado pelo fenómeno inflacionista. Tanto a inflação alimentar como as expectativas quanto à evolução dos preços explicam mais de metade da quebra da confiança registada no 1.º trimestre de 2023 face ao final de 2019 (ver Gráfico 7). A recuperação que se seguiu é, de forma consonante, explicada essencialmente pela redução da inflação – tanto a verificada, como a esperada. As expectativas de desemprego dos consumidores também explicam a recuperação. O alívio observado no ritmo de crescimento dos preços no mercado habitacional é outro fator diferenciador, ainda que o impacto estimado seja diminuto. Ainda assim, como indicado pelo contributo positivo de “outros” fatores, a confiança dos consumidores permaneceu relativamente mais forte do que o antecipado devido a elementos não capturados pela regressão. Note-se que neste modelo está incorporada a inflação, mas não o nível de preços.

 

Gráfico 7 – Decomposição estimada para a diferença da confiança dos consumidores face ao seu nível no 4.º trimestre de 2019

 

Fontes: Comissão Europeia, cálculos dos autores baseados na regressão linear estimada.

 

Conclusão

 

A confiança dos consumidores tem recuperado de forma expressiva no último ano, tendo regressado no 3.º trimestre de 2024 a níveis registados pela última vez em meados de 2021. Esta recuperação, que regista o maior número de meses de melhoria consecutiva desde 1997, ocorreu após a deterioração assinalável que se observou entre fevereiro e novembro de 2022. Contudo, em termos relativos, é importante notar que a confiança dos consumidores permanece em níveis inferiores aos observados em 2019.

 

Esta melhoria da confiança esteve, ainda assim, concentrada em agregados familiares de quartis superiores de rendimento. Verifica-se também que a percentagem de consumidores que reportam estar em situação de stress financeiro é quase o dobro da registada no pré-pandemia. Cerca de 15% dos consumidores podem ser identificados nessa situação, face aos 8,5% de dezembro de 2019. Este facto é consistente com o impacto diferenciado do aumento da inflação. Não obstante a moderação da inflação desde inícios de 2023, o seu impacto no nível de preços foi permanente. No caso dos bens alimentares, a sua evolução superou o das remunerações médias, traduzindo-se em perdas de poder de compra. 

 

Ainda assim, em termos agregados, a vulnerabilidade das famílias voltou a diminuir na primeira metade de 2024. Após um longo período de alívio entre 2015 e 2022, assistiu-se a um aumento temporário da vulnerabilidade financeira no ano de 2023, precisamente associado à quebra dos rendimentos disponíveis reais, bem como ao impacto do aumento das taxas de juro. Contudo, esta voltou a diminuir na primeira metade de 2024 com a recuperação do rendimento disponível real, ainda que o impacto do aumento das taxas de juro tenda a persistir no tempo.

 

 


[1] Para uma aplicação ao caso português ver, por exemplo, Mendicino e Punzi (2013).

 

[2] À semelhança do proposto em Comissão Europeia (2022).

 

[3] Abordagem apresentada em BCE (2021). Cada um destes indicadores é convertido numa escala estandardizada com uma média igual a zero e um desvio-padrão de um. De seguida, os subindicadores compostos são calculados para cada uma das cinco dimensões apresentadas, através da média aritmética simples. Por último, o indicador composto total é obtido através da média ponderada de cada uma das cinco subcategorias.

 

[4] Semelhante ao apresentado em Bobasu et al. (2024).

 

[5] Frequência trimestral, com a confiança dos consumidores como variável dependente, e como variáveis explicativas uma constante, a variável dependente desfasada dois períodos, a taxa de variação anual do IHPC dos bens alimentares, a taxa de desemprego, a taxa de variação homóloga do Eurostoxx 600, a taxa de variação anual do preço da habitação (publicada pelo Bank of International Settlements), e as expectativas dos consumidores quanto à evolução dos preços e do desemprego nos próximos 12 meses (inquéritos de conjuntura publicados pela DG ECFIN).

 


Referências bibliográficas

Ahmed, M. I. e Cassou, S. P., (2016). “Does consumer confidence affect durable goods spending during bad and good economic times equally?”, Journal of Macroeconomics, Volume 50, pages 86-97, ISSN 0164-0704.

 

Nikoleta Anesti & Vania Esady & Matthew Naylor (2024). "Food prices matter most: Sensitive household inflation expectations", Discussion Papers 2434, Centre for Macroeconomics (CFM).

 

Banco de Portugal (2022). “Estimativas de inflação por nível de rendimento e escalão etário”. Boletim Económico, Caixa 6, outubro 2022.

 

BCE (2015), “Does consumer confidence predict private consumption?”, European Central Bank, ECB Economic Bulletin, Issue 5 / 2015 – Box 2.

 

BCE (2021). “Financial Stability Review, November 2021”, Banco Central Europeu, novembro de 2021. 

 

Bobasu, A., Esposito, D., Gareis, J. (2024). “Why are euro area households still gloomy and what are the implications for private consumption?”. ECB Economic Bulletin, 6.

 

Comissão Europeia (2022). “The impact of inflation on consumers’ financial situation – insights from the Commission’s consumer survey”, Box 1.2, Summer 2022 (interim) forecast. 

 

Guo, Y. & He, S., (2020). "Does confidence matter for economic growth? An analysis from the perspective of policy effectiveness", International Review of Economics & Finance, Elsevier, vol. 69(C), pages 1-19.

 

Mendicino, Caterina, Punzi, Maria Teresa (2013). “Confidence and economic activity: the case of Portugal”. Boletim Económico, Banco de Portugal.

 

Mishkin, F. S., Hall, R., Shoven, J., Juster, T., e Lovell, M., (1978). “Consumer Sentiment and Spending on Durable Goods”. Brookings Papers on Economic Activity, 1978(1), 217–232.

 

Data da última atualização: 28/11/2024

Macroeconomia . 28 novembro 2024