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Contraciclo - O blogue da CFP

Da cauda à mediana: descodificar as pressões inflacionistas em Portugal

Por: Erica Marujo, João Leal, Luís Folque, Tiago Martins
Inflation is taxation without legislation.” Milton Friedman

Hopefully, with inflation starting to recede, we have entered the final stage of the inflationary cycle that started in 2021. But hope is not a policy, and the touchdown may prove quite tricky to execute.” Pierre-Olivier Gourinchas Economic Counsellor e Director of Research, FMI.

 

Os últimos anos ficaram marcados por um choque inflacionista de uma dimensão sem precedentes na história da união económica e monetária europeia. Neste contexto, aumentou a necessidade, e o interesse, em aprofundar a compreensão do fenómeno inflacionista. Em Portugal, a inflação alcançou 8,1% em 2022, o seu nível mais elevado desde 1992, tendo desacelerado posteriormente para 5,3% em 2023 e 2,7% em 2024. O agravamento foi particularmente evidente nos preços dos bens alimentares, cujos níveis de preços em 2024 eram cerca de 30% superiores aos observados em 2021.

 

Desenvolveram-se, ou aprofundaram-se, um conjunto de ferramentas que identificassem a componente mais persistente e generalizada dos preços. Ao abstraírem-se de movimentos voláteis ou idiossincráticos, espera-se que forneçam um sinal mais informativo sobre a inflação no médio prazo. Uma análise recente do BCE[1] elenca, de forma detalhada, os indicadores desenvolvidos pela instituição para apurar a inflação subjacente. Em termos gerais, estes agrupam-se em 3 categorias, de maior ou menor complexidade: (i) medidas de exclusão permanente (e.g. inflação excluindo bens alimentares e energia); (ii) medidas de exclusão temporária (e.g. médias aparadas); (iii) medidas construídas através de modelos (e.g. modelos de fatores dinâmicos). 

 

Uma publicação recente da Reserva Federal Americana (Fed) acrescenta uma nova proposta ao leque existente.[2] Esta nova perspetiva assenta nas observações registadas no regime de inflação baixa e estável, que perdurou durante os 25 anos anteriores à pandemia. Os autores comprovam a existência de uma relação empírica robusta entre a inflação registada num determinado mês, e uma medida de assimetria da distribuição das variações de preços do cabaz de bens e serviços subjacente ao índice de preços. O objetivo passa por responder à questão: “Dada a assimetria na distribuição subjacente das variações de preços, a leitura da inflação de um determinado mês é demasiado elevada (ou demasiado baixa) para ser coerente com a relação pré-pandemia?

 

A distribuição da variação dos preços permite uma interpretação mais informada do fenómeno inflacionista. Em termos aproximados, a taxa de inflação total, medida pelo Índice Harmonizado dos Preços no Consumidor (IHPC), num determinado mês corresponde à média (ponderada) das variações de preços em todas as categorias que compõem o índice de preços. Com efeito, de um ponto de vista macroeconómico, não é indiferente se um aumento dos preços superior ao referencial de estabilidade do Banco Central é impulsionado por um conjunto limitado de bens e serviços (e.g. preço dos combustíveis), ou é resultado de um movimento mais alargado e, por conseguinte, com maior probabilidade de persistência no tempo. 

 

Uma distribuição considera-se assimétrica sempre que a média diverge da mediana das observações. Os autores fazem uso da seguinte identidade: Média = Mediana + (Média-Mediana). Uma taxa de inflação global mais elevada (média) que é impulsionada por uma mediana mais elevada será mais preocupante do que uma que é impulsionada por uma maior assimetria à direita (média - mediana > 0). Como medida de assimetria os autores utilizam o percentil da distribuição em que se enquadra a inflação global. Por exemplo, numa distribuição simétrica a média cairá no percentil 50, tal como a mediana. Para uma distribuição com assimetria à direita, a média situa-se acima do percentil 50. Por outro lado, numa distribuição com assimetria à esquerda, a média situa-se abaixo do percentil 50.

 

Esta Caixa adapta esta metodologia à realidade portuguesa. Fez-se uso de um nível de granularidade a 4 dígitos COICOP do IHPC,[3] correspondente a 90 categorias individuais de preços de bens ou serviços, numa amostra temporal mensal compreendida entre 1996 e 2024. Cada uma destas componentes foi posteriormente sujeita a um ajustamento sazonal para impedir que a variação dos preços seja justificada por flutuações regulares motivadas pela altura do ano em que a observação é realizada (e.g. preço dos pacotes turísticos durante o verão). O gráfico 1 ilustra a distribuição dos preços das subcomponentes do IHPC em diferentes meses dos últimos anos.

 

Gráfico 1 – Distribuição da variação mensal dos preços

 

Fontes: Eurostat, cálculos dos autores. 

 

Em Portugal, tal como nos EUA, a taxa de inflação mensal tem uma relação previsível com a assimetria da distribuição. O gráfico 2 apresenta a aderência empírica de uma regressão local polinomial de suavização da dispersão (LOESS) estimada entre a inflação mensal e a medida de assimetria escolhida, para o período pré-pandemia 1996 e 2019. A cada um dos círculos a cinzento corresponde uma observação mensal durante este período. De forma semelhante à evidência para os EUA, destaca-se que as observações estão concentradas em torno do objetivo de inflação anualizada em torno de 2% - a que corresponde, aproximadamente, a uma inflação mensal de 0,16%. Tal significa que níveis de inflação mais elevados estavam associados a uma assimetria da distribuição – refletindo alterações de preços numa percentagem relativamente pequena das componentes (e.g. aumentos nos preços dos alimentos) – e não a uma mediana da distribuição mais elevada. Assinala-se, também, que o intervalo de confiança de 95% é mais estreito quando a média está próxima da mediana, mas mais largo quando a mesma se afasta da mediana da distribuição.

 

Gráfico 2 – Relação não linear entre a variação dos preços e a assimetria da sua distribuição

 

Fonte: Cálculos dos autores. 

 

Com esta ferramenta conseguimos identificar se a inflação está a evoluir num sentido inconsistente com a estabilidade dos preços. A estreita relação identificada no período pré-pandemia permite inferir se a inflação tem uma base suficientemente ampla para ser considerada incompatível com o objetivo de 2%, ou se é motivada por um fenómeno localizado. O gráfico 3 ilustra os desvios registados, de 2022 a 2024, entre a inflação observada e a inflação esperada com base na distribuição da variação dos preços nas 90 componentes do IHPC consideradas. Os dados são alisados em médias móveis a 12 meses para suavizar a volatilidade dos mesmos. 

 

Destacam-se 14 meses – entre abril de 2022 e maio de 2023 – em que os desvios podem ser considerados estatisticamente significativos. Isto é, para um mesmo grau de assimetria no período que precedeu a crise inflacionista, durante esses meses o nível de inflação registado excedia agora de forma significativa o que podia ser esperado, traduzindo-se num movimento da curva da relação não linear estimada anteriormente. Dito por outras palavras, estes níveis de inflação só se tinham observado no passado por choques de categorias muito localizadas do cabaz – como sejam os preços dos combustíveis -, e não de uma forma tão generalizada. Uma crise inflacionista que, inicialmente, se encontrava confinada a um conjunto limitado de bens e serviços, tornou-se assim progressivamente mais abrangente. Esta leitura é consistente com as informações no gráfico 2, que identificam as observações do ano de 2022 como outliers.

 

Gráfico 3 – Diferença entre a inflação observada e a estimativa consistente com o grau de assimetria da distribuição

 

Fonte: Cálculos dos autores. 

 

A análise da distribuição das variações do cabaz de consumo confirma o cimentar do processo de desinflação. Com efeito, entre junho de 2024 e janeiro de 2025, o Banco Central Europeu reduziu a taxa de juro em cerca de 125 pontos base, de 4% para 2,75% no caso da facilidade permanente de depósito. A confiança neste processo está igualmente patente nas previsões de médio-prazo que, no caso da área do euro, antecipam a convergência para o objetivo de 2% no decorrer deste ano. No caso particular da economia portuguesa, a metodologia aqui descrita permitiu identificar tanto o período de pressões inflacionistas ascendentes e generalizadas, bem como a subsequente normalização, ainda que este processo possa ser considerado incompleto com a persistência de diferenciais ligeiramente superiores a zero visíveis no gráfico 3. A utilização da informação sobre a distribuição da inflação no cabaz comprova a sua utilidade e complementaridade face a outras medidas, dada a sua capacidade de distinguir entre pressões inflacionistas generalizadas e movimentos localizados e, assim, oferecer um sinal informativo sobre períodos em que a inflação se desvia do regime observado nos 20 anos do período pré-pandemia.

 

 


[1] BCE (2023).

[2] Smith, Simon C., and Alexander L. Wolman (2024).

[3] Classificação do consumo individual das famílias por função (COICOP).

 


Referências bibliográficas

Banbura, M., Bobeica, E., Bodnár, K., Fagandini, B., Healy, P., and Joan Paredes (2023). ‘Underlying inflation measures: an analytical guide for the euro area’. ECB Economic Bulletin, Issue 5.

Smith, Simon C., and Alexander L. Wolman (2024). "New tools to monitor inflation in real time," FEDS Notes. Washington: Board of Governors of the Federal Reserve System, December 20, 2024, https://doi.org/10.17016/2380-7172.3617.

Data da última atualização: 21/03/2025

Macroeconomia . 21 março 2025