The Chair of the Portuguese Public Finances Council, Nazaré da Costa Cabral, was one of the guest speakers at the International Conference on the Challenges of Public Financial Governance, organised by the Court of Auditors in collaboration with the Court of Auditors of France (Cour des Comptes), the French Public Finances Association (FONDAFIP) and the Institute of Economic Financial and Tax Law (IDEFF) of the Law Faculty of the University of Lisbon.
The topics discussed included decentralisation and management of Local Finances, with an emphasis on the role of Local Authorities in the fight against crises and their participation in the sustainability of public finances, as well as public finances and social justice, risk assessment and the role of Parliaments, Courts of Auditors and other control bodies.
Colóquio Internacional "Desafios da Governação Financeira Internacional"
Queria começar por agradecer o convite que me foi dirigido pelos organizadores desta importante iniciativa, Sua Exa. o Presidente do Tribunal de Contas, Dr. José F.F.Tavares, e em nome da FONDAFIP, o Professor Michel Bouvier e, em nome do IDEFF da Faculdade de Direito de Lisboa, o Professor Eduardo Paz Ferreira. Este é já um Colóquio recorrente e muito importante em matéria de finanças públicas, envolvendo os tribunais de contas português e francês, e onde naturalmente é possível ver a forma como os dois países abordam temas relevantes e que são do interesse comum e que, portanto, justificam esta troca e esta partilha de ideias. Infelizmente, sofri na semana passada um pequeno acidente, uma entorse no pé, que me tem mantido praticamente imobilizada deste então e era-me difícil deslocar-me hoje até aí. Agradeço, pois, ao Tribunal de Contas a forma como prontamente encontrou esta solução alternativa, permitindo manter a minha intervenção.
Cumprimento o Professor Michel Bouvier com quem partilho este painel inicial, o que constitui para mim uma honra, pois o Professor Michel Bouvier é uma das grandes referências mundiais no estudo das finanças públicas. Saliento um traço marcante e constante na sua vasta obra e intervenção académica e científica, que é a de nos propor uma visão, se assim posso dizer, humanista das finanças públicas, enquanto forma de atuação do Estado que deve estar fundamentalmente ao serviço do bem-estar dos cidadãos e da promoção do bem comum.
O Colóquio desdobrar-se-á em três temas, todos eles muito atuais e relevantes, o primeiro sobre a descentralização financeira e gestão local, o segundo sobre justiça social na receita e na despesa públicas e o terceiro sobre avaliação dos riscos e o papel das instituições de controlo.
Permitam-me dizer umas breves palavras sobre cada um dos destes três tópicos, fazendo o percurso ao contrário e começando assim por este último – o tópico da avaliação dos riscos. Como sabem, o Conselho das Finanças Públicas, embora não sendo uma instituição de controlo no sentido próprio termo, tem um papel importante, no âmbito do desempenho da sua missão, ao nível da avaliação do risco, dos riscos orçamentais e em especial os riscos de longo prazo. De facto, em praticamente todas as análises que faz, e que são tornadas públicas, o CFP identifica os riscos que se colocam à situação orçamental e financeira quer das Administrações Públicas no seu todo, quer de cada um dos sectores em particular. Aspetos como as responsabilidades contingentes e pressões latentes sobre a despesa são identificados e, sempre que possível, quantificados. Os riscos de longo prazo são também analisados no âmbito do cumprimento desse mandato legal, nomeadamente em áreas críticas como são os sistemas de segurança social e de saúde. Aliás, o CFP publica, com caráter bianual, um Relatório intitulado justamente “Riscos Orçamentais e Sustentabilidade de Longo Prazo das Finanças Públicas”, o último dos quais em dezembro de 2021, e onde pudemos fazer, pela primeira vez, uma análise também dos riscos associados às alterações climáticas. Temos vindo a aprofundar esta matéria do ponto de vista técnico, considerando também o trabalho que tem vindo a ser desenvolvido pelas várias entidades relevantes, no país e fora dele, e desde logo por outras instituições orçamentais independentes, congéneres do CFP.
Claro que de entre esses riscos, assinalados pelo CFP, aquele que sempre se destaca é o que está associado ao elevado peso da dívida pública portuguesa, uma condicionante das nossas finanças públicas e que não pode ser descurada em momento algum, obrigando a uma atitude de grande responsabilidade coletiva (envolvendo todos os sectores do Estado) na condução da política orçamental e da gestão orçamental. Como sabemos, no quadro da UEM, beneficiámos, até à eclosão da pandemia, da conjugação favorável de fatores, eu diria uma conjugação única de fatores, que permitiu uma trajetória de redução do peso da dívida no PIB e a redução gradual dos custos de financiamento nas novas emissões de dívida. Esses fatores, que se reconduzem a um efeito dinâmico favorável (taxa de juro implícita da dívida pública inferior à taxa de crescimento nominal), estiveram em boa medida relacionados com a política monetária seguida pelo BCE nos últimos anos, uma política expansionista, em que quer a política convencional, quer a não convencional (programas de compra de ativos) caminharam no mesmo sentido e direção, reforçando-se mutuamente para contornar os riscos de deflação e sobretudo para impulsionar as economias fragilizadas após a grande crise financeira. A atual escalada inflacionista, neste pós-crise pandémica, já veio ditar uma alteração da política monetária conduzida pelo BCE, desde logo o aumento, já anunciado, das taxas de juro diretoras. Já no que diz respeito à política monetária não convencional, se é verdade que também já se anunciou a descontinuidade gradual dos programas de compras de ativos em vigor, não é menos verdade que se vem admitindo a hipótese, como forma de prevenir o regresso aos sinais de fragmentação financeira na Europa e de prevenir novas pressões no mercado de dívida, a hipótese de renovar ou lançar novos programas de ‘Quantitative Easing’. Se isto for assim, assistiremos claramente a uma mudança paradigmática na implementação da política monetária na área do euro, até aqui centrada no seu objetivo estatutário de estabilidade dos preços, para ser reorientada para objetivos de política quase-orçamental. E mais. Se isto for assim, as políticas monetárias convencional e não convencional, até aqui alinhadas no seu sentido e direção, poderão agora assumir sentidos diversos, a primeira orientada para a resposta urgente à inflação, à defesa da taxa de câmbio do euro e ao alívio, assim, da pressão sobre os termos de troca nos países da área do euro, a segunda orientada para fins orçamentais de suporte às dívidas soberanas dos países mais endividados e sujeitos a maior pressão. Mas esta simples sugestão de uma eventual reconfiguração, nestes termos heterodoxos, da política monetária do BCE – em parte justificada também pela inexistência de uma política orçamental única na EU –, além de envolver riscos e ser de difícil concerto no plano europeu, vem, acima de tudo, pôr a nu aquela que é realidade de alguns países, como é o caso de Portugal – uma dívida pública excessiva e vulnerável, sempre difícil de sustentar num mercado volátil por natureza. A reabilitação da nossa situação financeira, que é também uma condição de reforço da independência do país face ao exterior, trazendo a dívida pública portuguesa pelo menos para os níveis da média europeia, deve ser assumida como exigência nacional, associada ao reforço da dinâmica económica do país e dos sinais de credibilidade e de responsabilidade na condução da nossa política orçamental.
A dívida pública e o esforço financeiro que ela implica constituem uma restrição orçamental ativa e comprimem, por conseguinte, a margem de atuação do Estado, e desde logo aquelas que são as suas principais funções sociais, como temos verificado, aliás, nos últimos anos. A capacidade do país para responder às emergências sanitárias, económicas e sociais, mas desde logo para responder às solicitações regulares de despesa pública, tem sido criticamente afetada, em boa medida por causa desta escassa margem orçamental. O peso dessa restrição orçamental, associada à insuficiente robustez da nossa economia, condiciona o desempenho e a capacidade de resposta do nosso Estado social, a começar, como estamos agora a ver, pelo sector da Saúde. Nesta fase crítica, pós-pandémica, em que diversos sinais de fragilidade se percebem no nosso Serviço Nacional de Saúde (SNS), uma questão que desde já importa colocar é a de saber se haverá condições para sustentar este SNS com base no modelo universalista de base fiscal, tal como definido na Constituição portuguesa, e que SNS será possível assim sustentar. Estou certa de que, no painel relativo ao tópico da justiça social, seja do lado da política fiscal, seja do lado da despesa pública, algumas destas questões serão tratadas, e em última análise o que é esperado do futuro do Estado social em países desenvolvidos como são a França e Portugal, após as crises várias que temos vivido nos últimos tempos.
Há um aspeto que me parece claro e que é este: se é verdade que só se pode cultivar a justiça social em países economicamente prósperos e financeiramente sustentáveis, também não é menos verdade que por vezes o reforço dos mecanismos de justiça social, na definição das várias políticas, permite favorecer finanças públicas mais equilibradas e uma mais salutar interação entre o Estado e a economia. Num quadro de recursos escassos, em que é preciso fazer opções e definir prioridades, pode e deve dar-se prioridade a quem mais precisa, reforçando os mecanismos de diferenciação positiva ou até de seletividade, através da mediação justamente do princípio da justiça social.
Um dos aspetos importantes para garantir a melhor implementação das políticas públicas, nos planos da eficiência e da própria justiça social, é o que se prende com a sua concretização do ponto de vista territorial. Consoante a geografia, população, história e tradição político-institucional de cada país, vemos como há países mais e menos centralizados. Portugal tem uma matriz centralizadora, ainda que nas últimas décadas tenha ensaiado processos de transferências de atribuições e competências para as autarquias locais, concretamente os municípios, matéria que será tratada a seguir, logo no primeiro painel. A primeira iniciativa de descentralização foi lançada entre nós em 1999, na sequência da rejeição da criação de regiões administrativas no referendo de 1998. A segunda tentativa foi iniciada em 2018, tendo por base o acordo celebrado entre os dois principais partidos portugueses. Este processo não tem corrido da melhor forma: eu tenho aliás uma visão muito crítica em relação ao modo como ele tem evoluído e digo isto infelizmente até porque sou, por princípio, favorável à descentralização. O debate político que temos visto parece resumir-se aos recursos financeiros que se pretende transferir, se são ou não são suficientes, quando deveria ser ou ter começado por ser um debate sobre o que se justifica ou não transferir. Com base no princípio da subsidiariedade, aliás plasmado na nossa Constituição, o argumento para a descentralização é o da maior eficiência na alocação dos recursos públicos – fazer melhor na provisão de serviços públicos com os mesmos recursos ou até com menos -, tendo por base não apenas a proximidade dos centros de decisão aos cidadãos, mas também por se considerar que governos com uma esfera de atuação local estarão melhor capacitados para assegurar a provisão de bens coletivos locais, isto é, de bens cujo benefício tem, à partida, um alcance geográfico confinado a essa circunscrição.
Depois, importa notar que uma transferência de atribuições e competências para níveis infraestaduais de decisão é isso mesmo, uma transferência, o que implica que o aumento das competências, dimensão e recursos dos níveis infraestaduais deverá necessariamente acarretar, para fazer sentido, a redução concomitante dos equivalentes ao nível do governo central. Essa transferência deverá assim, necessariamente, implicar o redimensionamento, para menos, da Administração Pública central numa medida pelo menos similar à que se traduzirá o redimensionamento, para mais, da Administração Local, sem induzir, na sua globalidade, custos acrescidos nem pressões de despesa adicionais, antes pelo contrário.
Creio que faltou aqui, para enquadrar este processo, uma adequada base técnica e teórica, faltou apoiar este processo em argumentos económicos sólidos, retirando-o da esfera do casuísmo e das pressões mediáticas em que me parece que ele acabou por cair. O gradualismo necessário que deve existir neste processo de transferência de competências não deve confundir-se com errância, nem com incoerência. A diversidade de autarquias com dimensões, população, características geográficas e capacidade económica e fiscal muito diferentes no território nacional tornaria premente uma prévia delimitação e assunção clara, nos planos técnicos e político, dos níveis de atuação, das competências e dos poderes funcionais a transferir dentro de cada política pública (na saúde, educação, ação social, etc.). Infelizmente, este exercício técnico e político não foi feito da forma que deveria ter sido. A ausência desta delimitação clara pode envolver efeitos muitos gravosos na prestação desses mesmos serviços públicos aos cidadãos: nuns casos, sobreposição de competências, envolvendo redundâncias e desperdício de recursos; noutros casos, o oposto, isto é, o vazio de competências, quando todos os níveis envolvidos se demitem de responsabilidades e empurram para os demais as competências que entendem não ter.
‘O financiamento segue a função’, diz-nos a teoria do federalismo financeiro. Assim sendo, só depois de uma clara identificação destas esferas de atuação e quantificação dos respetivos custos de provisão, haveria condições para apurar, com correção e rigor, que recursos, que meios financeiros transferir. A forma casuística, discricionária, com negociações ad hoc, dependente de concessões que tendem a ser pouco transparentes é de novo o contrário do que deveria ser. Deveria ser um processo de transferência de recursos assente num quadro de programação financeira plurianual, a aplicar durante o período transitório de assunção das novas competências, também ele devidamente calendarizado - um período transitório realmente transitório, e curto, após o qual o quadro de financiamento, definitivamente estabilizado, volveria a ser de novo, como nos ensina também a teoria e as boas práticas internacionais, um quadro de transferências assentes em fórmulas automáticas e não discricionárias, quer quanto à sua alimentação fiscal, quer quanto à sua ulterior distribuição pelos vários municípios. Por ora, vendo o que se passa em termos orçamentais, já depois de iniciado este processo de transferência, verificamos que as opções são avulsas e não programadas; desconhecemos, por seu turno, qual será o desenho futuro das transferências para os municípios, agora que se vai falando em alterar ou mudar o regime financeiro dos mesmos. Devo dizer que estou cética e estou sobretudo preocupada, até pelas consequências que isto pode vir a ter num plano mais vasto para as contas públicas, no plano da disciplina orçamental no setor público e no plano da boa gestão orçamental e financeira das autarquias locais. Espero que a discussão que se vai ter no painel seguinte possa afastar muitos destes receios e ajudar-nos a perceber como será o desenrolar deste processo daqui em diante, que se quer linear e consequente.
Muito obrigada pela V/ atenção!
Nazaré da Costa Cabral
Date of last update: 30/06/2022