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O novo paradigma de industrialização na Europa e riscos para a economia portuguesa *
 

Em meados deste ano, foi aprovado na União Europeia (UE) o Regulamento (UE) 2024/1735, também chamado Regulamento Indústria de Impacto Zero (Net-Zero Industry Act). Além da descarbonização, esta peça legislativa revela outro objetivo fundamental: o reforço da competitividade das indústrias europeias ‘limpas’, e que são também indústrias apoiadas em tecnologia avançada e suscetíveis de gerar alto valor.  

 

Pouco tempo depois, no mês de setembro, foi apresentado à Comissão Europeia, pelo próprio autor (Mario Draghi), o Relatório sobre o Futuro da Competitividade Europeia. Este relatório traça um retrato muito desencantado da situação económica europeia, desde logo em face de outros blocos regionais, particularmente os Estados Unidos da América e a China. O grande desafio da UE, apontado pelo Relatório, é o desafio da produtividade e isso passa, sobretudo, pelo reforço da inovação tecnológica. O Relatório não deixa, entretanto, de reconhecer que há sectores onde a ‘batalha’ da competitividade estará já irremediavelmente perdida para a Europa. Um exemplo referido é o da computação na cloud, tratando-se de um mercado que surgiu à custa de investimentos massivos, beneficiando de economias de escala e onde múltiplos serviços são assegurados por praticamente um só fornecedor.

 

Estes dois documentos encerram todo um programa de (re)industrialização da EU que, a meu ver, assenta em três ideias-chave. Em primeiro lugar, a ideia de escalabilidade, ou seja, a necessidade de as indústrias que operam nos sectores tecnológico e digital ganharem escala, ou seja, uma dimensão europeia, para melhor poderem enfrentar a concorrência norte-americana e chinesa, seja pela via da concentração ou consolidação de indústrias (no caso, por exemplo, das empresas a operar no sector das telecomunicações para facilitar a conectividade na Europa), seja pela via da coordenação entre indústrias, seja pela plena concretização do Mercado Interno, nomeadamente através da eliminação de diferenças regulatórias existentes entre Estados membros e que afetam a atividade das empresas que atuam neste sector. Em segundo lugar, a ideia de integração vertical e intersectorial das indústrias em causa, aproveitando sinergias e capacidades de desenvolvimento de forma articulada entre vários sectores. No caso, por exemplo, da Inteligência Artificial (IA), bastará pensar na multiplicidade das suas aplicações em diversas outras indústrias (produtos médico-terapêuticos e de diagnóstico, indústria automóvel, etc.). Em terceiro lugar, a ideia de aglomeração, o mesmo é dizer, de ‘clusterização’ em novos vales tecnológicos (inspirados no modelo Silicon Valley) e em especial a concretização do novo cluster para as indústrias de impacto zero e que são também, como vimos, clusters de tecnologia. 

 

Este novo paradigma de industrialização combina, portanto, uma ideia federalista para a Europa com a promoção de mecanismos de atração regional (em torno de certas, poucas, regiões), seja de fatores de produção (capital/trabalho) e tecnologia, seja do investimento e da capacidade de gerar riqueza. Esta questão não é nova, tendo sido estudada nos idos 1990s, por exemplo, por Paul Krugman, no âmbito da sua investigação sobre a ‘nova’ geografia económica ou modelo centro-periferia.

 

Na Alemanha, este tema é vital, numa altura em que o país enfrenta o maior choque económico após a reunificação (sem contar com a pandemia) – o choque da reconversão da sua indústria à revolução da IA associada à descarbonização.   Alguns estudos têm vindo a ser produzidos neste país desde a aprovação do Regulamento Indústria de Impacto Zero, para antecipar os seus possíveis efeitos. De entre eles, destaco o de André Wolf (Centro de Política Europeia, Berlim)[1]. O autor avalia e identifica as regiões da UE com capacidade para acolher estes novos clusters ‘Net-Zero’, com base em quatro categorias de indicadores: a) transportes; b) indústria ICT (tecnologia de informação e comunicação), c) pólos universitários e de investigação científica e d) administração pública. As classificações máximas são encontradas em regiões que se concentram em quatro Estados-membros: Alemanha, França, Dinamarca e Países Baixos. Identificam-se as regiões, por ex. Estugarda ou Karlsruhe, capazes de formação desses clusters, os quais por sua vez podem estender-se a outras áreas na Europa central e de leste. Portugal não pontua bem, ficando arredado do(s) vale(s) tecnológico(s) Net-Zero. Assim se acentua a sua periferização. Repare-se, por outro lado, que esta nova industrialização exigirá mobilização massiva de financiamento público europeu, podendo, no limite, implicar reafectações de fundos financeiros não necessariamente ancoradas nos tradicionais objetivos de coesão. 

 

Portugal e as suas regiões devem ter presentes este risco e a necessidade de se posicionarem desde já nas cadeias de produção tecnológica, incluindo com ligação aos clusters regionais Net-Zero que agora se delineiam. Urge contrariar, com uma estratégia clara, o destino traçado de ser país distante dos centros económicos relevantes, a quem não bastará o consolo da persistência do sol e da beleza das praias.

 


[1] Wolf, A. (2024). “Framework Conditions for Net-Zero Industry Clusters for Europe”, Intereconomics, 2024, 59(5), 267-275.  

 

*Artigo de opinião publicado originalmente na edição n.º 12611 do Jornal Público, de 11 de novembro de 2024.

Data da última atualização: 12/11/2024

Intervenções Públicas . 12 novembro 2024