Intervenção da Presidente do CFP, Nazaré da Costa Cabral, no Cascais International Health Forum, no dia 1 de Junho, no Estoril.
Sessão Plenária: “Desafios da Saúde na Próxima Década”
As políticas públicas, como é a política de proteção social no seu todo e em particular a política de saúde, são fortemente tributárias, na sua implementação, não apenas da orientação resultante das normas programáticas vertidas na Constituição e das decisões políticas de concretização desse programa, mas também, como não poderia deixar de ser, das restrições orçamentais, elas próprias, em grande medida dependentes do estado presente da economia e das perspetivas de crescimento económico futuro. Este condicionamento da política pública pelas restrições orçamentais é conhecido, na linguagem jurídico-constitucional, como ‘a reserva do financeiramente possível’. Neste sentido, a implementação do programa constitucional dirigido, desde logo, à concretização plena de direitos sociais, como é o direito à saúde, está em cada momento dependente da capacidade de o Estado financiar a despesa envolvida, sem comprometer a sua própria sustentabilidade financeira futura e, no limite até, o crescimento da economia. Cada decisão de política envolve dois tipos de custos: o custo contabilístico ou financeiro correspondente aos montantes necessários à sua realização e um custo económico, usualmente referido como ‘custo de oportunidade’. Assim, qualquer opção de política, num quadro de recursos limitados (como são os recursos económicos), envolve o custo de ter de se abdicar de outras medidas de despesa noutras áreas, ou então, a necessidade de expandir os recursos necessários à sua realização, e isso envolverá também um custo, seja no presente seja no futuro, para quem tiver de os providenciar.
De acordo com o Relatório do Conselho das Finanças Públicas (CFP) publicado em 2023, sobre o Sector da Saúde, relativo ao ano de 2022, a despesa do Serviço Nacional de Saúde (SNS) atingiu 13168 M€, representando 5,5% do PIB e 12,3% da despesa pública total. Ela tem hoje já, portanto, um peso expressivo quer perante a riqueza gerada pelo país, quer no quadro na despesa do Estado. A eventual decisão de expandir mais a despesa em saúde e, desde logo, com a despesa o SNS pode implicar assim, mormente num quadro de débil crescimento económico, ter de abdicar de alguma despesa pública noutros sectores ou então a necessidade de incrementar a receita fiscal. Isto, partindo do pressuposto de que se mantém ativa, nos próximos anos, a restrição orçamental de progressivo menor peso da dívida pública no PIB. Por outro lado, na medida em que seja necessário reforçar a despesa pública noutras áreas, isso pode também limitar a margem de crescimento ou até implicar alguma redução da despesa na área da saúde. Hoje, existem diversas pressões novas sobre a despesa pública, desde logo as relacionadas com o combate às alterações climáticas e transição energética que obrigarão a um esforço grande de investimento privado, mas também público, seja na descarbonização, seja na prevenção e mitigação de fenómenos climáticos extremos, como é, no caso português, o risco de seca no interior sul e de cheias em certas zonas do litoral. Acresce, por força das obrigações no seio da NATO, a necessidade de se reforçar a despesa em defesa nacional (no caso português, aumentando o peso dessa despesa de 1,4% do PIB para 2%), necessidade que se tornou imperativa em face do novo quadro geopolítico na Europa e no mundo.
A despesa com a proteção social, e em especial com a saúde, envolve importantes externalidades positivas, desde logo sobre o crescimento económico. É intuitivo pensar que uma população que apresente um bom estado geral de saúde seja uma população mais produtiva, desde logo por apresentar níveis de absentismo ao trabalho mais baixos. Por seu turno, diversos estudos na área da economia da saúde, feitos ao longo de anos, mostram a correlação positiva entre desenvolvimento económico e cuidados de saúde, o que legitima admitir que quer o desenvolvimento económico favorece bons cuidados de saúde, quer o inverso, ou seja, que bons cuidados de saúde são promotores de desenvolvimento económico.
O envelhecimento da população está muito associado à ideia de perda de saúde, ou deterioração da qualidade de vida, com isso saindo prejudicado o próprio crescimento económico. Como referido no Relatório do CFP de 2023, sobre Riscos Orçamentais e Sustentabilidade das Finanças Públicas, “o envelhecimento da população afeta o crescimento económico, diretamente, pela via impacto no emprego, decorrente da diminuição esperada da população ativa e também, indiretamente, através da alteração dos padrões de poupança e investimento, com impacto nas decisões de consumo e no stock de capital” (CFP, 2023). Com efeito, nas projeções recentes feitas pelo CFP para a economia portuguesa, cobrindo o período 2023-2037 (quinze anos), estima-se que esta cresça, em média, 1,2% ao ano (o que, diga-se, é um valor pouco entusiasmante). Em termos de composição, o crescimento económico deverá, à semelhança do observado em termos históricos, assentar num contributo expressivo da produtividade total dos fatores, cujo valor se deverá situar, em média, em 0,9 p.p., e de um contributo menor do fator capital, em torno de 0,4 p.p. em média. Pelo contrário, no mesmo período, o emprego deverá apresentar um contributo negativo (-0,1 p.p.), refletindo sobretudo a deterioração das perspetivas demográficas (CFP, 2023, p. 13). Ou seja, fruto do envelhecimento, o contributo dado pelo fator trabalho para o crescimento no longo prazo torna-se negativo, em virtude da redução da produtividade deste fator.
É possível e desejável antecipar e minimizar o impacto negativo sobre o crescimento económico associado ao envelhecimento da população, desde logo com a implementação de estratégias de ação preventivas multissectoriais orientadas à promoção do envelhecimento saudável e ativo, mediante aproveitamento das capacidades produtivas remanescentes dos trabalhadores. Na área da saúde, a aposta na medicina preventiva, a par de uma boa educação em saúde desde as idades mais precoces, contribuirá para esse desiderato de um envelhecimento são e ativo. Às políticas de saúde e de educação acrescem políticas laborais de valorização contínua do trabalho no plano remuneratório e não só, bem como políticas promotoras da saúde física e mental do trabalhador e da conciliação entre vida profissional e pessoal, em suma, promovendo o equilíbrio salutar entre trabalho e lazer.
Ora, de entre os cuidados de saúde, a área dos cuidados continuados na terceira e quarta idades é talvez a mais desafiante na próxima década. Eu diria mesmo que o ‘elefante na sala’ do sistema de saúde no seu todo e, em particular, do SNS são os cuidados continuados de longo prazo.
De acordo com a Comissão Europeia, CE (no Ageing Report – AgR de 2024), Portugal está no topo dos países com maior rácio de dependência atual e projetado para as próximas décadas (36,1% UE, contra 41% PT; estima-se que em 2045, a diferença se alargue 52,8% na UE, contra 65,9% PT). Para efeitos de ‘long-term care’ - LTC, a CE usa uma métrica para a definição de rácio de dependência e que a permite definir como a “limitação de longa duração para a realização de atividades, auto-percebida como severa, devida a problemas de saúde (por um período não inferior a 6 meses)”. Esta dependência é função natural da própria idade. Verifica-se, por outro lado, que Portugal está na cauda da lista (só antecedido pela Grécia), no que diz respeito à cobertura da sua população dependente com a prestação de cuidados de longo prazo, seja no domicílio, seja num meio institucional (menos de 5% no total, contra cerca de 30% na média da UE).
Por sua vez, a projeção de longo prazo constante do mesmo AgR quanto à evolução da despesa pública com cuidados formais (seja no domicílio seja em instituições) mostra-nos que atualmente Portugal está também muito abaixo na média da UE nessa despesa pública – 0,5% do PIB contra 1,7% –, e em grande medida isso deve-se ao facto de termos uma cobertura muito baixa face àquelas que seriam as necessidades da nossa população dependente. Fazendo a projeção em políticas invariantes (ou seja, nada mudando quanto a esse grau de cobertura), antecipa-se um aumento de 0,1 p.p. do PIB em despesa com LTC em 2030 e de 0,4 p.p em 2070, o que não parece preocupante. Note-se, contudo, que se tivéssemos já hoje, em PT, uma taxa de cobertura idêntica à da média da UE (ou seja, à volta dos 30% ao invés dos menos de 5%), estaríamos certamente acima da média da UE em termos despesa pública em LTC, ou seja, acima dos 1,7% do PIB em despesa pública com estes cuidados. Na verdade, o cenário alternativo apresentado pela CE para hipótese de alteração políticas, consistindo no aumento do nosso grau de cobertura para níveis idênticos aos da média da UE, implicaria em 2030 um aumento de três décimas do PIB e no fim do horizonte o crescimento quase astronómico de 8,5 p.p, ou seja, passaríamos do atual peso de 0,5% no PIB para 9% do PIB da despesa pública com LTC, uma variação brutal, superior a 1800%!
Há já hoje, contudo, estou em crer, uma fatia de despesa pública em cuidados continuados que não aparece nestes números agora mostrados no AgR, ou seja, neste valor dos 0,5% do PIB da nossa despesa pública em LTC. São aqueles cuidados que acabam por ser prestados, indevidamente, em meio hospitalar, por falta de capacidade de resposta ou cobertura da Rede Nacional de Cuidados Continuados Integrados (RNCCI), acabando por ter um custo superior ao que teriam nesse meio de cuidadores formais. Do 8.º Barómetro de Internamentos Sociais da Associação Nacional de Administradores Hospitalares resultava que, no dia 20 de março, os hospitais do SNS tinham internadas 2164 pessoas de forma inapropriada, um valor correspondente a 11% do total dos internamentos. A nível nacional, refere o barómetro, a falta de resposta da Rede Nacional de Cuidados Continuados Integrados (RNCCI) foi responsável por 44% dos internamentos inapropriados – à semelhança do ano anterior –, seguida da espera por uma resposta numa estrutura residencial para pessoas idosas, responsável por 30%. E isto com custos anuais em torno dos 300M€, certamente superiores aos que se teriam se esses cuidados fossem prestados na rede própria, o que não é de todo irrelevante.
A área dos cuidados continuados de longo prazo que tem merecido até aqui uma atenção por parte dos poderes públicos não consentânea com o grande risco orçamental que acarreta deve, pois, merecer um novo olhar e consideração. A abordagem deverá fazer-se em torno de quatro eixos fundamentais: i) prever; ii) planear; iii) reforçar; iv) financiar.
Assim, em primeiro lugar, prever. Ou seja, haverá que, no campo das previsões macroeconómicas e orçamentais, estimar – de acordo com modelos adequados à realidade demográfica, social e económica portuguesa – os verdadeiros impactos de médio e longo prazo que o reforço deste sector dos cuidados continuados, por exemplo aumentando o nível cobertura para níveis similares aos da UE, poderá acarretar para as contas públicas e para a sustentabilidade financeira do próprio sistema de saúde.
Em segundo lugar, planear, e planear no médio prazo, ou seja, desenvolver seja à escala macro (da definição da política de cuidados continuados), seja à escala micro (a nível da gestão das próprias unidades de cuidados integrados) instrumentos e um modus operandi que permitam antecipar necessidades, identificar prioridades em termos de despesa corrente e de investimento, fazer programação financeira e orçamental, gerir por objetivos, custear por atividades.
Em terceiro lugar, reforçar. O reconhecimento da necessidade de reforço resulta já do Plano de Recuperação e Resiliência que inclui uma linha de financiamento para novos investimentos quer na RNCCI quer na RNCP. Para além desses investimentos, sem dúvida necessários para o aumento do número de camas, logo, da capacidade de resposta destas duas redes, há dois domínios onde esse reforço (e o planeamento desse reforço) parece justificar-se com maior premência: por um lado, a área dos recursos humanos; por outro lado, a área dos recursos digitais. Em relação à primeira, a priorização da formação de recursos na área da gerontologia e de apoio social. Em relação à segunda, o desenvolvimento de ferramentas digitais de prestações destes cuidados, como sejam a medicina à distância, a robotização e a inteligência artificial, ferramentas que cada vez mais terão um papel de complementaridade em relação à prestação de cuidados médicos e sociais em moldes convencionais e até, em certos casos, podendo substituí-los.
Em quarto e último lugar, mas não menos importante, haverá que financiar. Não tenhamos ilusões: o alargamento da prestação de cuidados continuados de longo prazo, em função do aumento das necessidades da nossa população envelhecida, terá um custo financeiro e um custo de oportunidade. O esforço requerido aumentará em percentagem do PIB, e poderá ter de implicar supressão ou diminuição de despesas noutras áreas das políticas públicas, a menos que o crescimento económico no longo prazo seja pujante, necessariamente superior aos 1,2% em média ao ano, projetados pelo CFP, e de que antes se deu nota. Como financiar esta necessidade acrescida de despesa é a questão que se põe de seguida. Será de manter um financiamento exclusivo por transferências do Orçamento do Estado (OE) para o SNS (isto é, um financiamento por impostos) ou justificar-se-á aqui diversificar as fontes de financiamento? A meu ver, essa diversificação deve, pelo menos, ser estudada. Outras fontes de financiamento, como seguros sociais obrigatórios ou seguros privados, planos de saúde para cobertura de cuidados continuados, em suma, instrumentos de financiamento baseados no custo da eventualidade devem ser equacionados, e destinados, pelo menos, a complementar o financiamento fiscal exclusivo.
Na verdade, se se justifica, a meu ver, olhar para a diversificação de fontes de financiamento no sistema público de saúde no seu todo, mais se justificará no caso particular dos cuidados continuados de longo prazo. Isto, desde logo, por se tratar de cuidados de longo prazo: porque podem estar sujeitos a períodos longo de formação, como sucede nos planos de pensões, e porque podem ser prestados por períodos longos também. Ou seja, o financiamento destes cuidados pode ser planeado e formado ao longo do tempo, inclusive com base num modelo de capitalização. Depois, porque a área dos cuidados continuados é uma área multissectorial que cruza a saúde e a segurança social, sendo que nesta prevalece justamente o financiamento contributivo inspirado no modelo dos seguros sociais. Depois ainda, porque os cuidados continuados são igualmente uma área descentralizada, na medida em que a prestação desses cuidados, em diversos casos, é feita não diretamente pelo Estado, mas sim no âmbito de contratos de cooperação, pelos sectores social e privado, por força da aplicação do princípio de subsidiariedade social (previsto na Lei de Bases da Segurança Social). Ela é assim, por estas razões, uma área já hoje mais propensa à concorrência entre prestadores e à possibilidade de escolha desses prestadores, e é mais propensa à lógica de financiamento cost-effective (ou seja, em função do custo). Acresce que esta área dos cuidados de saúde, sendo das mais recentes na sua implantação, é como vimos uma das mais pressionadas em termos de crescimento da despesa respetiva, por causa do envelhecimento demográfico. Por ser uma área relativamente nova, mas também uma área sujeita a grande pressão financeira, ela é, por conseguinte, mais predisposta a acomodar novas soluções de financiamento. Ou seja, e em suma, a ideia de diversificação das fontes de financiamento, mormente na área dos cuidados continuados de saúde deve ser ponderada, pois trata-se de pensar no longo prazo e na sustentabilidade financeira futura do sistema de saúde em geral e do SNS em particular.
Concluo para reconhecer que algumas destas ideias agora expostas podem parecer excêntricas em face do status quo vigente em matéria de financiamento do SNS e da RNCCI em particular. Mas a situação do sistema obriga a isso mesmo, a pensar ‘fora da caixa’ e a procurar, na medida do razoável, novas soluções. Na verdade, o quadro atual é complexo e exigente e há que reconhecer, com realismo, as restrições orçamentais com que o sistema e o país se confrontam. Num momento de envelhecimento acelerado, marcado por mutações ambientais, tecnológicas e na estrutura laboral e profissional da nossa sociedade, o risco ‘doença’ aumenta e mudam as suas manifestações, pondo à prova a capacidade do SNS e do sistema no seu todo para os enfrentar no médio e no longo prazo. Por isso, impõe-se uma reflexão profunda sobre as formas e modelos de provisão de cuidados de saúde e de financiamento, com vista a uma melhor gestão de risco, promoção da sustentabilidade do sistema e salvaguarda da justiça social. A área dos cuidados continuados, pelas suas características particulares, está na fila da frente para se dar início a essa reflexão.
Data da última atualização: 01/06/2024