.jpg?19:27:50)
[1].jpg?19:27:50)
Intervenção de Nazaré da Costa Cabral na Celebração do 154.º Aniversário do Serviço de Administração Militar, no dia 28 de junho, em Lisboa.
As Finanças Públicas Portuguesas perante os Novos Desafios Globais
A pandemia da COVID-19 expôs ou acelerou tensões políticas e económicas que se vinham desenhando no mundo, sobretudo desde o início do século XXI. A superveniência da China como a outra grande potência mundial ao lado dos EUA tem aumentado a perceção de uma clivagem longitudinal do mundo, partido em dois grandes blocos, um a ocidente e o outro a oriente. A China personifica, na verdade, quer no plano económico, quer no plano político, um modelo institucional muito diferente do da generalidade das economias ocidentais. No plano económico, corporiza um modelo heterodoxo e até algo paradoxal nos seus termos – o de uma economia marxista virada para o mercado; no plano político, caracteriza-se como regime de centralismo de Estado baseado num partido único. A afirmação da China como grande potência económica mundial resulta não apenas da sua própria dimensão – ela é sem dúvida um grande mercado em território e população que quase se bastaria a si mesmo –, mas também do aproveitamento que esta soube fazer das vantagens do livre-cambismo e do multilateralismo potenciadas pela sua adesão à Organização Mundial do Comércio (OMC) no ano de 2001.
Entretanto – importa notar –, o livre-cambismo deixou de significar apenas liberdade e multiplicação de trocas comerciais envolvendo bens e serviços e implicando o desenvolvimento e sofisticação de meios de pagamento e de fluxos de capitais. O livre-cambismo passou a significar, também, maior liberdade de acesso e de partilha quer de conhecimentos, inovação e tecnologia, quer de dados e informações.
A globalização de trocas de bens e serviços, de tecnologia e de conhecimento, neste primeiro quartel do século XXI, contribuiu para taxas de crescimento aceleradas em diversos países, desde logo nas economias emergentes (com a própria China à cabeça, mas também a Índia secundando os ‘velhos’ tigres asiáticos) e trouxe com isso, nesses países, o aumento dos níveis de bem-estar e dos índices de desenvolvimento humano. Infelizmente, esse crescimento contribuiu também para o uso cada vez mais intensivo de recursos fósseis não renováveis e penalizou decisivamente o equilíbrio ecológico do nosso planeta. As alterações climáticas associadas às emissões excessivas de carbono são o preço que o mundo está já a pagar, se calhar de forma irreversível, pela forte concorrência e crescimento económico verificado em diversas paragens, nas últimas décadas, e nos moldes em que este crescimento assentou. Ao mesmo tempo, as novas formas de competição económica baseadas quer na inovação e tecnologia (sobretudo tecnologia digital), quer no acesso a informação amplificam riscos de fugas e uso indevido de dados e facilitam novas formas de ‘pirataria’ (o caso dos ciberataques), afetando a privacidade e a liberdade individual dos cidadãos, a proteção de segredos empresariais e a própria segurança dos Estados. O acesso a dados e a possibilidade da sua manipulação tornaram-se, mais do que nunca, fontes de poder económico, político e militar.
Fruto desta múltipla globalização, o mundo está assim cada vez mais interpenetrado e exposto a efeitos de contágio, sejam estes positivos ou negativos. Com efeito, e do ponto de vista económico, esta dependência mútua dos países em relação às ações dos outros traduz ora a verificação de externalidades negativas, de que é exemplo maior a destruição da camada de ozono e da biodiversidade, ora de externalidades positivas, como foi o processo recente de vacinação contra o vírus SARS-CoV-2. Na verdade, a vacinação massiva ocorrida em certas partes do mundo limitou a propagação do vírus e acabou por beneficiar, indiretamente, as populações e os países menos vacinados.
Há de resto, hoje, maior consciência da primazia de um certo tipo de bens marcados por externalidades vastíssimas que a todos dizem respeito e em que o benefício que deles se pode retirar fica também dependente do uso que lhes é dado por todos. Por exemplo, o ambiente é hoje qualificado, nos estudos da microeconomia, como o mais importante ‘bem público global’, mas em que a salvaguarda do seu amplo benefício depende da forma como se utilizam certos outros bens, cujos limites físicos são evidenciados por essa mesma utilização. Estou a pensar, concretamente, nos recursos naturais provenientes do mar e da terra que constituem, por sua vez, do ponto de vista microeconómico, os chamados ‘bens comuns’ globais. Enquanto bens comuns, estes recursos naturais estão sujeitos a concorrência na sua utilização e estão sujeitos, assim também, a processos de exaustão ou esgotamento.
Também o campo tecnológico, e sobretudo o campo da revolução digital, mostra essa interdependência entre países, para o bem e para o mal. Desde logo, o acesso a infraestruturas digitais é hoje considerado um fator crítico de desenvolvimento económico e este é tão mais crítico quanto menor seja esse desenvolvimento. Dessas infraestruturas dependem necessidades basilares dos Estados, como sejam a identificação digital, estruturas e sistemas de pagamentos e sistemas de trocas de dados. Em especial, a capacidade de os países responderem, de forma tempestiva e adequada, por exemplo, quer a doenças, incluindo epidemias ou pandemias, quer a catástrofes naturais, quer ainda a ataques terroristas, golpes de Estado ou outras formas de conflito depende, em larga medida, da disponibilidade dessas mesmas infraestruturas.
Ora, se se reparar, o acesso ao digital, seja ao nível das infraestruturas (como é o caso dos softwares ou plataformas de identificação ou IP), seja ao nível do espectro radioelétrico, seja ainda ao nível dos próprios dispositivos eletrónicos envolve, à partida, mecanismos de exclusão ou de restrição no acesso, desde logo, sempre que esse acesso fique dependente do pagamento pelos seus utilizadores ou beneficiários. No entanto, o acesso ao digital, enquanto bem económico, tem a particularidade, ao contrário dos bens privados típicos, de envolver o uso de ‘ambientes’ livres ou não concorrenciais, onde não se verifica, por isso, um risco de esgotamento do bem. São os chamados bens de clube, na linguagem microeconómica. O acesso à internet ilustra bem este tipo de bem de clube, e este é suscetível de ser um bem de clube global. A nível internacional, nomeadamente no âmbito das Nações Unidas, vem-se pugnando pela transformação destes bens digitais sujeitos a restrições de acesso em verdadeiros bens públicos digitais globais. Trata-se, assim, de criar quer softwares de acesso livre (wi-fi), quer dados de acesso livre e ainda de permitir o recurso generalizado a modelos de Inteligência Artificial. Esta abertura é apontada como necessária para reforçar a soberania digital dos Estados – designadamente dos menos desenvolvidos – e reforçar essa soberania quer seja perante outros Estados, quer perante as grandes corporações tecnológicas. Existem, no entanto, riscos assinaláveis inerentes ao acesso e ao uso destes bens de ambiente livre e de potencial largo espectro: os problemas de cibersegurança antes relevados são focos de fragilidade de cada uma das unidades a eles expostos (indivíduos, empresas e Estados) e são fator de suspeição e de tensão global, determinantes de opções geoestratégicas assumidas pelos diferentes blocos que afetam os negócios das empresas e as políticas das organizações supraestaduais e de cada um dos Estados. O caso recente da tomada de posição da União Europeia, de eventual afastamento da fabricante chinesa Huawei do ‘núcleo’ 5G, atesta isso mesmo.
Entretanto também, o valor global da dívida em termos mundiais e, em especial o valor da dívida pública, atingiram números máximos em 2020, o primeiro fixando-se em quase 260% do PIB mundial e o segundo em cerca de 100% desse mesmo indicador. A pandemia da COVID-19 não foi alheia a este aumento, mas ela não é o único fator explicativo. Ainda que, segundo o ‘Global Debt Monitor de 2022’, do FMI, esse mesmo rácio de dívida global se tenha depois reduzido em 2021 face a 2020, em 10 p.p., beneficiando do efeito de recuperação rápida das economias fustigadas pela pandemia, a verdade é que a subsequente desaceleração económica e até em alguns casos nova recessão, em resultado da guerra na Ucrânia, trazem para os anos próximos perspetivas pouco animadoras. Nomeadamente, o aumento dos custos de financiamento em resultado das alterações da política monetária como resposta à inflação afetam a capacidade de recuperação das empresas e dos Estados, sobretudo dos que estiverem mais endividados. De resto, em traços gerais, o peso da dívida com esta tal expressão é sempre preocupante, restringindo a capacidade financeira dos países, desde logo das economias emergentes e menos desenvolvidas, para enfrentar os desafios futuros de combate à pobreza e de promoção do seu próprio desenvolvimento, incluindo a capacidade para assegurar o investimento necessário ao combate às alterações climáticas. A Cimeira recente de Paris, promovida pelo Presidente Emmanuel Macron, sobre a reforma do sistema financeiro mundial, com ampla participação de países, incluindo a da China, é significativa a este respeito. Tal como sinalizado pelo próprio Presidente Macron, a solução para o problema da dívida global, integrando as dívidas soberanas, deve ser equacionada não apenas no plano nacional de cada um dos Estados, mas também, e se calhar sobretudo, no plano internacional.
A forma de encarar a preservação de bens públicos e de bens comuns globais, como são o ambiente e os recursos da natureza, e bem assim a disponibilização em modelo aberto de alguns bens de clube que se desejaria globais, como são algumas infraestruturas digitais e do espectro radiológico, obrigariam ao reforço da cooperação internacional e à manutenção de um certo espírito de confiança mútuo entre os vários países e blocos do mundo. A resposta coordenada à emergência climática e a maximização de ganhos de produtividade inerentes à revolução digital assente em bases éticas sólidas e assumidas no concerto das nações permitiriam, por sua vez, desenvolver a salutar concorrência económica entre empresas e países na base do multilateralismo e do livre-cambismo.
Todavia, não é isso que se está a verificar, antes pelo contrário. Em 2018, durante a Presidência de Donald Trump, reavivou-se a ‘guerra comercial’ entre os EUA e a China, com a adoção pelo primeiro de medidas protecionistas de resposta à convocada concorrência desleal feita por esta última, e apoiada nas novas preocupações com os aspetos de segurança na área digital. A Presidência de Biden não inverteu esta via protecionista. A pandemia e agora a guerra na Ucrânia, ainda que por razões diferentes, acentuaram a fragilização do multilateralismo, contrapondo-lhe lógicas bilaterais ou um multilateralismo comprimido, marcado, por exemplo, pelo encurtamento das cadeias de abastecimento e de valor, através de práticas comerciais baseadas em proximidades geográficas, políticas ou de interesses estratégicos (o chamado ‘near shoring’ ou ‘friend shoring’ surge agora como alternativa à prática multilateral ‘offshoring’ subjacente ao espírito da OMC). No plano digital, ao invés de abertura de acesso, tudo aponta para o caminho da fragmentação da internet e de outras infraestruturas, traduzindo, pois, a desconfiança e, no limite, o fechamento dos países ou de blocos destes em relação aos outros. A globalização corre hoje, assim, riscos importantes.
Neste contexto muito problemático que vivemos, marcado pela guerra e pela própria tensão latente e subjacente entre as duas grandes potências, joga-se também o papel da UE enquanto bloco regional e esse é determinado pela sua escala, em termos económicos e territoriais. Ainda que a UE tenha assumido e assuma um papel pioneiro em certas áreas, como sucedeu no combate à pandemia e agora, de forma mais duradoura, com o combate às alterações climáticas, mobilizando fundos financeiros colossais e inéditos (o caso do ‘Plano de Recuperação e Resiliência’), a verdade é que se trata de gerir bens públicos globais (ou bens com elevadas externalidades globais) que obrigam, para serem consequentes, uma ação conjunta à escala mundial. Sozinha, a UE pode pouco e a sua ação será inconsequente se desacompanhada da vontade e da intervenção positiva de outros países, a começar das principais potências. Por seu turno, o envolvimento recente da UE em projetos e iniciativas no âmbito da promoção do acesso livre a infraestruturas digitais, como por ex. a Next Generation Internet Initiative, confronta-se com riscos de segurança crescentes, e resultantes, como vimos, da gestão de bens de clube que têm ou são suscetíveis de ter um alcance global, ou pelo menos um alcance que ultrapassa as fronteiras políticas da própria União.
É verdade, por outro lado, que perante os seus Estados-membros, a UE parece oferecer a escala necessária para gerir outros tantos bens públicos que estes Estados, sozinhos, poderão não ter capacidade para assegurar ou assegurar com eficácia. A atual guerra da Ucrânia e todos os efeitos que esta tem acarretado legitimaram, na UE, um novo tipo discurso, diria com uma certa tónica federal – discurso este, aliás, protagonizado pela própria Presidente da Comissão Europeia e anterior ministra da Defesa alemã –, acerca da assunção de mais competências pela UE na gestão de bens que assumidamente envolvem externalidades positivas para toda a União e/ou que implicam economias de escala na sua provisão, como é o caso da energia e da defesa. A criação na UE, há já vários anos, do chamado ‘Mercado Único da Energia’, inicialmente sobretudo associado à transição energética para fontes renováveis, ganha agora, no decurso da guerra, um novo papel estratégico, como forma de garantia da independência e da segurança energéticas da própria UE. De igual modo, a centralização de algumas competências pela UE na área da Defesa, que poderia eventualmente culminar na criação de uma força militar europeia (por alguns chamado de ‘exército europeu’) implicaria, no plano político, um novo posicionamento da Europa, incluindo perante os seus tradicionais aliados, e obrigaria, do ponto vista financeiro, a um reforço muito significativo do Orçamento Europeu.
As finanças de cada país ou de organizações supraestaduais refletem justamente a forma como bens públicos, bens comuns e bens de clube são providos e geridos por cada uma delas e atendem à forma de os financiar. Os Estados devem, em princípio, gerir os bens cujo benefício se restrinja às fronteiras desse território e, quando estejam inseridos em organizações supraestaduais de finalidades diversas, devem ser estas a assumir competências sobre aqueles bens que criem benefícios que extravasam aquelas fronteiras ou apresentem efeitos de contágio para todo o território dessa união.
Além disso, como vimos antes, estamos hoje confrontados, de forma mais evidente do que outrora, com a necessidade de gerir bens públicos, comuns e de clube que são bens globais. Isso exigiria uma atuação coordenada e até o reforço da cooperação entre países. Infelizmente, estamos neste momento longe de um tal cenário. Quanto mais necessária parece ser uma ação multilateral no mundo, mais se assiste a uma fragmentação das ações e das políticas dos diversos atores.
O futuro próximo da economia e das finanças portuguesas não pode ser desligado destas condicionantes. A resposta à emergência climática exigirá do país um esforço financeiro e um investimento muito significativos, obrigando quiçá até a opções políticas de reorientação da despesa, num contexto de dívida pública elevada e por isso particularmente limitativa, como vimos antes, da capacidade de ação do Estado. Acresce que, ao contrário, das demais despesas públicas, cuja eficácia se liga em boa parte a esse mesmo esforço, neste caso do combate às alterações climáticas, a eficácia do mesmo esforço, e por maior que seja, não depende apenas de nós, como não depende de cada país isoladamente. O alcance da decisão e da atuação a nível nacional tende a ser ínfimo, por si só inconsequente numa matéria de expressão global. Por sua vez, dado o impacto desta ação apenas para futuro, não são de excluir tensões geracionais e dificuldades de validação democrática destas políticas em prol da descarbonização, que envolvem pesados custos de oportunidade, e que podem vir até a condicionar a intervenção do Estado em outras áreas amplamente aceites, como são, por exemplo, as áreas da saúde, educação e segurança social.
Para concluir, pode enfim dizer-se que, nesta área da transição climática, como noutras antes referidas – as áreas do digital, energia e defesa –, afigura-se estar em curso uma redefinição de competências entre a UE e os Estados membros, que, acredito, irá obrigar – já está a obrigar – ao reforço do orçamento europeu e à criação de novos impostos e de novas formas de dívida europeia. A relação entre orçamentos nacionais e europeus refletirá esse plausível rearranjo de competências. A UE por si só, em certas áreas, não se bastará, tratando-se da gestão de bens de alcance global. Ainda assim, ao ganhar dimensão, a UE pode reposicionar-se, no mundo, como grande mercado e como bloco económico regional, capaz de ver reforçado a sua força política.
Ao mesmo tempo, a necessidade de reafirmação da independência da Europa em sectores industriais estratégicos, nomeadamente perante parceiros agora considerados de ‘alto risco’, obrigará a uma eventual europeização de certas cadeias de abastecimento, nas quais os países membros terão de se reposicionar atempadamente de forma a garantir a sua inserção nas de mais alto valor acrescentado e, assim, garantir a sua competitividade perante concorrentes europeus e internacionais. Este é um dos grandes desafios que, Portugal, um país geograficamente periférico, enfrentará sobremaneira e disso dependerão, em boa medida, as condições de produtividade da sua economia, o seu crescimento potencial e, enfim também, a sustentabilidade futura das suas finanças públicas. Veremos o que nos diz o futuro, já que o presente é tão incerto.
Data da última atualização: 03/07/2023