
Intervenção de Nazaré da Costa Cabral, Presidente do Conselho Superior do Conselho das Finanças Públicas, na 5.ª Conferência Anual do Conselho Orçamental Europeu, com o tema “Centralização vs Descentralização do Quadro Orçamental da União Europeia”, realizada em Bruxelas no dia 11 de maio.
Painel "A Sustentabilidade da Dívida pode ser Operacional?
Dois tipos de observações:
a) Observações de carácter mais geral
- Com esta proposta da Comissão Europeia (CE), do novo quadro de governação económica e que tem como ponto de partida a análise da sustentabilidade da dívida (DSA, na sigla inglesa), parece que a União Económica e Monetária (UEM) está a avançar para um modelo mais descentralizado de restrições orçamentais duras (ex ante), baseado na apropriação nacional das regras orçamentais, o que, de certa forma, tende a compensar o modelo centralizado e muito severo de restrições orçamentais duras (ex post) resultantes do Tratado com a sua "cláusula de não resgate" (non bailout).
- Na minha opinião, a ideia de atribuir aos Estados-Membros a responsabilidade pela adoção de "planos orçamentais e estruturais nacionais a médio prazo", com base nas respetivas trajetórias projetadas de dívida pública, justifica-se pela necessidade de equilibrar, na dose certa, a descentralização e a centralização das políticas orçamentais, em particular como forma de garantir uma combinação equilibrada entre descentralização e centralização de restrições orçamentais hard, e calibrar melhor apropriação e flexibilidade nacionais com a responsabilidade individual de cada Estado pelo cumprimento dessas regras.
- Uma fonte de preocupação, especialmente no caso dos países que têm um historial de fraco cumprimento e de fraca aplicabilidade das regras orçamentais, está em saber se este quadro baseado na apropriação nacional das regras orçamentais abrirá, uma vez mais, a porta a uma atitude mais negligente em relação à disciplina orçamental. Por sua vez, a possibilidade contida na proposta, de revisão pelo Estado-membro do plano consolidação orçamental durante a trajetória de ajustamento, pode também afetar a perspetiva de médio prazo e desviá-lo para interesses de curto prazo, incluindo interesses eleitorais do governo nacional em questão. Uma mudança de governo, a meio da implementação do plano, pode também ter efeitos perturbadores na concretização dos objetivos de ajustamento contidos nesse plano. Além disso, os efeitos de contágio para outros Estados-Membros, decorrentes deste eventual aumento da leniência orçamental, não devem ser negligenciados. Por outro lado, é positivo ver na proposta da Comissão um papel acrescido das instituições orçamentais independentes nacionais (IFIs na sigla inglesa), durante a execução do plano de consolidação, com a competência de avaliar possíveis desvios na trajetória da despesa líquida. No entanto, não é claro qual será o seu envolvimento na fase inicial de conceção dos planos nacionais e se se espera que seja algum. Aliás, não sabemos sequer se a opinião da Comissão prevalecerá ou não (veja-se a última posição do Conselho a este respeito que, na minha opinião, desvaloriza o papel das IFI neste novo quadro). Como nota de prudência, penso aliás que se deve evitar qualquer pretexto político, a nível nacional, para desvalorizar o papel das IFIs.
- Outra fonte de preocupação está relacionada com o que Sebastian Barnes mencionou de manhã cedo e que tem a ver com a coerência entre as regras operacionais da União Europeia, UE (a trajetória a médio prazo para as despesas líquidas) e as regras orçamentais internas de cada Estado membro. Por vezes, regras específicas aplicadas ao Estado e também regras específicas aplicadas aos seus governos regionais e locais podem revelar-se inúteis para fazer cumprir o conjunto de regras da UE e podem mesmo ser prejudiciais a esse esforço. No caso de Portugal, temos essa experiência. Notamos que as regras aplicadas aos governos regionais e locais têm sido incoerentes com as regras orçamentais específicas do setor Estado central e incoerentes com o quadro geral das regras da UE aplicadas a todas as administrações públicas em contas nacionais.
b) A abordagem DSA, em especial:
- Concordo que a DSA é uma ferramenta muito útil para avaliar os riscos orçamentais, fornecendo uma boa imagem sobre o nível e a dinâmica da dívida e sobre o espaço orçamental do país. Trata-se de um instrumento realista e operacional – na fase atual, beneficia já de um profundo trabalho técnico realizado na década anterior para o tornar mais abrangente e o mais preciso possível, a começar pelos trabalhos do FMI e, agora, pelo trabalho técnico do Banco Central Europeu e da CE (também de contributos académicos, em particular da abordagem de Olivier Blanchard). Há, no entanto, alguns aspetos que necessitam de ser pormenorizados na sua implementação a nível da UEM. Uma questão prende-se com o papel e a relevância da classificação de risco resultante da DSA como base para a definição do plano nacional de consolidação orçamental, incluindo a trajetória técnica para a despesa líquida. Em termos gerais, acredito que os países da UEM, em particular os países altamente endividados, com este modelo de ajustamento orçamental ‘feito mais à medida de cada um’, estarão ainda mais expostos ao ‘sentimento de mercado’ do que estavam com o modelo ‘tamanho único’.
- Além disso, tal pode, por sua vez, envolver esforços assimétricos de ajustamento orçamental entre países e pode afetar as condições de concorrência equitativas que é suposto existirem entre si. Em particular, não é claro para mim, ao ler a proposta de regulamento da Comissão, o modo como conciliar os esforços necessários de investimento nacional nas áreas digitais e verdes – que serão decisivos para promover o crescimento potencial na próxima década – com o novo indicador de despesa líquida. A margem de manobra orçamental para manter em alta o investimento nacional é afetada pela necessidade de reduzir a dívida e, ao mesmo tempo, a margem orçamental para reduzir o rácio da dívida é afetada por essa necessidade de investimento.
- Embora a DSA seja um instrumento muito abrangente, não é inteiramente claro de que forma os indicadores adicionais necessários para sinalizar os riscos de liquidez e solvência serão inseridos na DSA a adotar a partir de agora. Em particular, os riscos de solvência a mais longo prazo como a estrutura da dívida pública (maturidade, composição monetária e tipo de taxa de juro), a dimensão dos passivos contingentes, a posição financeira líquida da economia e os riscos políticos e institucionais, não é claro como serão eles considerados. Além disso, é necessário clarificar a forma como esta abordagem estará relacionada com o procedimento relativo aos desequilíbrios macroeconómicos excessivos (a referência contida na proposta da CE é muito vaga), o que é crucial para se tornar este quadro mais operacional e bem elaborado.
- Os riscos de ‘paragens súbitas’ ou de congelamento do mercado da dívida podem repetir-se (à semelhança de 2010) e não creio que esta preocupação esteja convenientemente refletida neste quadro orçamental proposto, a começar pelas próprias projeções ínsitas à DSA. Em especial, a atenção prestada ao sistema de pagamentos da UEM e às contas correntes e financeiras bilaterais entre os membros da área do euro deverá merecer alguma atenção nesta nova configuração.
- A abordagem DSA abrange o médio prazo (10 anos na projeção). Mesmo que o horizonte seja mais amplo do que era na DSA do FMI, ainda não capta totalmente a dinâmica da dívida no longo prazo. E o facto é que os países com riscos mais elevados a curto e médio prazo podem, por outro lado, estar menos expostos a riscos a longo prazo, por exemplo, devido a menos riscos de envelhecimento ou devido a reformas anteriores dos sistemas de pensões. O ‘Debt Sustainability Monitor’, de 2022, mostra isso muito bem. Penso que a abordagem DSA, com uma incidência a médio prazo e sem uma ligação conveniente com a dimensão de longo prazo, pode tornar-se contraproducente se minimizar as reformas estruturais destinadas a reduzir as pressões sobre a dívida a longo prazo. Note-se que o plano é qualificado pela proposta da Comissão, também como plano estrutural, mas receio que esta última dimensão possa ser negligenciada no exercício de avaliação.
- Além disso, não é claro de que forma os riscos relacionados com a política monetária serão considerados neste novo quadro DSA. Esta questão foi anteriormente abordada por Enrique Alberola com a investigação apresentada e as simulações que foram feitas, tendo principalmente em conta o impacto da ‘Flexibilização Quantitativa’ (Quantitative Easing) na sustentabilidade da dívida (com menção também à ‘Contenção Quantitativa’ – Quantitative Tightening). Considerando agora a política monetária convencional, deve também ter-se em atenção que, em alguns países, a transmissão da política monetária às taxas de juro, incluindo às taxas de juro das obrigações da dívida soberana, é muito mais rápida do que noutros países. Essa transmissão não é simétrica, no sentido de que, provavelmente, é muito mais rápida quando o BCE aumenta as taxas de juro do que quando as diminui, e este ritmo não é semelhante em todos os países da UEM. O que é certo é que isso afeta o custo do financiamento e afetará as perspetivas de dinâmica da dívida.
- As IFIs devem ser capazes de fazer as suas próprias DSA, com base quer em cenários determinísticos, quer em projeções estocásticas, para confrontar com os cenários oficiais e ancorar melhor a sua avaliação futura. Note-se que várias IFIs (e o Conselho das Finanças Públicas, CFP, é uma delas) fazem as suas próprias projeções macro-orçamentais, o que facilita a sua tarefa de endosso das projeções do Governo. O mesmo deve acontecer com as DSAs. Para tal, é muito importante que as IFIs tenham acesso a informações, dados, ficheiros de código, pressupostos e critérios de qualificação, não só por parte do Governo, mas também da Comissão, até para uma compreensão adequada do plano de consolidação adotado e da respetiva coerência com a redução do nível da dívida durante o período abrangido. No caso do CFP, temos a intenção de (re)utilizar, desde já, a ferramenta DSA, em particular no nosso próximo Relatório bianual sobre riscos de médio-longo prazo para as finanças públicas, e que será publicado este ano. Neste exercício, beneficiaremos seguramente dos contributos técnicos recentes feitos nesta matéria, incluindo os que foram hoje apresentados.
Nazaré da Costa Cabral
Presidente do Conselho Superior do Conselho das Finanças Públicas
(As apresentações e a gravação da reunião estão disponíveis aqui.)
Data da última atualização: 29/05/2023