No relatório publicado pelo CFP relativo à evolução orçamental da Administração Local (AL) em 2022 constatou-se a existência de desvios significativos entre o somatório das previsões anuais da receita e despesa dos orçamentos municipais em contabilidade pública e a sua execução. A investigação das causas destes desvios motivou a elaboração da presente publicação ocasional.
Na elaboração dos orçamentos, os municípios devem seguir as diretrizes estabelecidas pela Lei das Finanças Locais (LFL) e pelo Plano Oficial de Contabilidade das Autarquias Locais (POCAL), além de acompanharem também o estabelecido no Sistema de Normalização Contabilística para as Administrações Públicas (SNC-AP) no que respeita aos mapas previsionais a apresentar.
Os dados apurados permitem confirmar que, e apesar de melhorias observadas desde 2015, as taxas de execução da receita e da despesa dos municípios mantêm situações de sobreorçamentação, com desvios significativos, em rubricas específicas. Em particular, sobressaem os desvios na receita de capital, designadamente quando às transferências de fundos europeus e, no lado, da despesa, as aquisições de bens de capital e as aquisições de bens e serviços.
Ainda assim, nos anos mais recentes, os desvios nos orçamentos municipais têm sido maiores do lado da despesa efetiva do que da receita efetiva, o que tem permitido que o subsector da Administração Local tenha vindo a apresentar um saldo orçamental positivo em termos de execução (413M€ em 2022), o que contrasta com o défice em contabilidade pública subjacente aos orçamentos municipais (-2,1 mil M€). Para esta situação contribui a necessidade de acomodar volumes significativos de compromissos assumidos anteriormente, conjugada com o respeito pelo equilíbrio global dos orçamentos, facto aliás já referido noutros estudos. Dos dados da execução orçamental do subsector, parece existir, em termos globais, um antes e um depois da Lei dos Compromissos e Pagamentos em Atraso (LCPA), que tem levado a que, sem prejuízo da previsão orçamental inicial, não se tenham vindo a registar défices (excluindo 2021 com o impacto da COVID-19). As restrições impostas na execução pela LCPA, contribuem, regra geral, para que não se realize despesa sem que exista receita para a financiar no próprio ano. Algumas exceções prendem-se, nomeadamente, com a despesa financiada por fundos comunitários, sendo a contrapartida nacional, quando exista, também ela objeto de exceções, designadamente quando financiada por empréstimos.
No que se refere à despesa de investimento (aquisição de bens de capital – investimento direto, mas também transferências de capital – investimento indireto), a sua baixa taxa de execução em 2022 encontra-se associada ao facto de, apesar de prevista, a receita proveniente de fundos europeus ter ficado muito aquém do esperado.
De assinalar que a taxa de execução relativa à rubrica de venda de bens de investimento em 2022 é significativamente inferior à que vinha sendo registada, apesar da reiterada repetição da norma em sede de Orçamento do Estado (OE) que limita a sua previsão. Esta regra, que poderia (ou mesmo deveria) ser aditada às regras do POCAL ainda vigentes ou à Lei das Finanças Locais, deveria continuar a ser acompanhada. O mesmo se aplica à incorporação do saldo de gerência anterior.
Face a estes desvios e ao peso dos compromissos assumidos em anos anteriores, a utilização das previsões em contabilidade orçamental pública constantes dos orçamentos municipais deverá ser realizada com cautela.
Acresce que o subsistema da contabilidade orçamental obriga à apresentação de todos os fluxos financeiros que se prevê que ocorram em cada período (recebimentos e pagamentos), perspetiva diferente da ótica da contabilidade financeira (assente na efetivação dos direitos e obrigações financeiras independentemente de quando ocorra o seu recebimento ou pagamento – princípio do acréscimo) ou da contabilidade de gestão (avaliação de resultados das atividades e projetos).
As demonstrações financeiras previsionais (balanço e demonstração de resultados) previstas no SNC-AP, e que poderiam permitir uma melhor aproximação à execução do ano por seguirem o mesmo princípio da contabilidade financeira, têm vindo a ser dispensadas da obrigatoriedade da sua elaboração pelas leis do OE para as entidades que integram a Administração Local. Contudo, não é certo que a sua apresentação introduza alterações nas previsões orçamentais em contabilidade pública, enquanto esta se mantiver condicionada por um histórico de compromissos transitados de períodos anteriores de volume significativo.
Assim, para além das regras previsionais, o problema essencial parece residir no dilema entre a obrigatoriedade quanto ao equilíbrio total do orçamento a apresentar e a necessidade de assunção de responsabilidades perante terceiros assumidas em exercícios anteriores. Este dilema leva a distorções nas previsões de receita anuais necessárias para cobrir toda a despesa prevista, uma vez que esta tem também de ter em conta a decorrente de compromissos anteriores. Para que a previsão de execução do orçamento não seja afetada por aquelas distorções, seria necessário que os orçamentos locais distinguissem, de facto, a despesa e a receita relativa a períodos anteriores, quer na sua elaboração, quer na sua apresentação e divulgação. A legislação, muito em particular o SNC-AP, já providencia as ferramentas necessárias para que isto aconteça. Caberá às entidades delas fazerem uso. Acresce a atenção ao princípio da especificação (classificação económica das receitas e despesas públicas), evitando o recurso abusivo a rubricas residuais, situação, aliás, que não é exclusiva da Administração Local, e que, em parte, decorre de alguma desadequação do classificador económico à realidade atual.
Data da última atualização: 02/07/2024